(Arte de dandelion-s)
Como vão, meus lindos e minhas
lindas? O mês está quase indo embora, mas como a minha força de vontade é quase
ilimitada, senti que precisava escrever um artigo para não deixar Março passar
em branco. E que ideia melhor para um artigo neste mês que um sobre as mulheres
fictícias mais admiráveis do universo literário?
"Quer fazer média com as feminazis, né? Sempre
soube que você era uma delas, sua esquerdista mal amada!"
"Ih, lá vem a biscoiteira, querendo escrever textinho empoderador no mês de março! Fascistas não passarão!"
Ãh-ãh..
Bom.
Há mais de cem anos, mulheres
marcharam nos Estados Unidos e na Inglaterra, protestando pelo direito de
votarem, por melhores condições de trabalho e por respeito e igualdade. Para
serem tratadas como seres humanos. O dia 8 de março convencionou-se a ser o dia
das mulheres, para relembrar o dia em que uma greve de operárias na Rússia
acabou numa tragédia ao ser reprimida pelo czar.
Desde então, houve mudanças,
melhoras, mas ainda há o Iraque, por exemplo, onde num clima de guerra e
vigilância constantes, as mulheres são oprimidas por uma religião que as vê
como incitadoras do pecado e cujas leis existem para colocá-las abaixo dos
homens em todos os aspectos possíveis. Mulheres ainda são estupradas em praticamente
qualquer país, ocidental ou oriental, e muitas vezes não podem nem sequer
reclamar disso. E quando reclamam, ainda correm o risco de ouvirem "Ah,
mas com essa saia, esse decote, estava pedindo".
Precisa dizer mais? O mundo é um
lugar com sérios problemas, disso todo mundo sabe e concorda. Mas essa doença
começa principalmente pela ignorância das pessoas.
"Ain, mas e daí? Você vai mudar o mundo
falando de livros? Vai combater o machismo com um monte de baboseiras
fictícias?"
Não, meus caros e minhas
queridas. Livros não mudam o mundo, não combatem o preconceito sozinhos, mas
pessoas fazem isso. E quer ver uma arma melhor pra uma pessoa fazer isso do que
dar a ela conhecimento, dar a ela recursos pra entender o mundo em que ela vive
e como ela pode virar o jogo? Dá um livro a ela. Leia. Pesquise as coisas,
tenha curiosidade, não se conforme com o que a pessoas dizem, o que elas acham.
Vai atrás.
E para o machinho fazendo cara feia
porque "Pô, essa muié fica
reclamando o dia inteiro, e os ômi como é que fica, porque os ômi também sofre,
os ômi isso, os ômi aquilo..." Olha, meu senhor, fique à vontade pra
sair do meu blog porque você é um imbecil
que não entende, não consegue compreender que quando as pessoas falam de violência
doméstica e de todos os abusos que elas já passaram nas mãos de homens, não é de você que elas estão falando, ok? E se a carapuça serviu tão bem assim, então talvez seja
melhor rever seus conceitos, camarada. Por que na hora de reclamar que os homens
morrem todos nas guerras e que não existe piedade para eles, tá tudo aí,
mas na hora da pancadaria nos estádios, fica tudo louco pra cair na porrada,
né? Defender a merda do time do coração enquanto a mãe tá em casa lavando as
cuequinhas deles. Reclamam e ofendem as mulheres que abortam, mas ficam aí,
dando conselho pro amiguinho aproveitar que a mulher está mais ferradinha na
festa e comer mesmo, né? Vão pro inferno e pro caralho que os partam,
bando de filho da puta que não entende porra nenhuma de generalização.
Agora que eu já disse tudo que
precisava ser dito, vamos ao artigo.
Top 5 das mulheres que eu mais
admiro dos livros! Lembrando que são as personagens femininas que eu
mais admiro, então não leve a mal se a personagem que você ama de
paixão não estiver aqui. Até porque, eu li muito poucos livros ainda e menos
livros ainda com personagens femininas, que acabam sendo minoria em muitos
gêneros literários ou relegadas ao papel de vítimas, infelizmente. Então, em
vez de reclamar que eu sou uma porca fascista, coloque aí nos
comentários quais as personagens que você adora e acha que deveriam estar aqui,
quem sabe eu não dou uma chance e leio também?
E sim, TEREMOS SPOILERS, afinal
eu falarei das realizações dessas mulheres. Aviso dado, aqui vai...
5º lugar-
Hermione Granger- Harry Potter, de J.K. Rowling
[Editado direto do ano de 2020: Essa parte do artigo já não reflete mais o que eu penso da J.K. Rowling atualmente e nem do problema envolvendo a representatividade que ela diz ter em seus livros. Na verdade, esse artigo quase todo já não representa muito do que eu penso atualmente. Bom, como diria a Chiquinha do Chaves, é próprio dos sábios mudar de opinião. ; ) ]
Não é segredo pra ninguém que eu
adoro Harry Potter. Desde o começo do blog eu mencionei isso, Harry Potter e a
Ordem da Fênix foi o primeiro calhamaço que eu li, e eu ainda estava na quinta
série! Eu já lia antes, mas Harry Potter foi o primeiro livro que me deixava
com os braços cansados de segurá-lo ao fim de uma leitura. Claro que o tamanho
de um livro não importa tanto quanto a qualidade, mas é preciso que o livro
seja muito bom para que o leitor aceite exercitar os bíceps pra lê-lo. E Harry
Potter nem precisaria dos filmes pra isso, mas vamos em frente com isso.
Hermione Granger...
Arte de kuvshinov-ilya |
Hermione é a bruxa mais
inteligente do trio de personagens principais, se destacando desde o começo da
série por ser aquela que tudo sabia e cujo passatempo era ler e estudar, algo
que faz com que todos sejamos completamente zoados na escola mas que confere
privilégios e habilidades na vida adulta que do contrário, nunca teríamos.
Sendo filha de dois dentistas trouxas, Hermione era a prova de que sem empenho,
todo talento natural era inútil. Afinal, Rony e Draco eram de famílias
completamente bruxas e nem por isso eram os alunos mais destacados.
Claro que nem sempre os planos da
nossa querida defensora dos elfos domésticos davam certo, como quando ela
preparou uma poção polissuco para que o trio pudesse espionar Draco Malfoy e o
resultado foi a fantasia condenável de muitos furries:
Apesar de toda zoação e todo o
bullying ao qual esteve sujeita por sua aparência, ela não se deixou abater,
chegando mesmo a dançar com Viktor Krum, o aluno de intercâmbio mais cobiçado
do baile do torneio Tribruxo. Mesmo assim, seu coração batia mais forte por
Rony Weasley, e bem...
É, eu
também não entendo o que ela viu no Rony... nem mesmo a J.K. entende, mas o importante é que
Hermione nunca decepcionou seus amigos nas situações mais difíceis, nem mesmo
quando a morte era quase certa.
No fim, ela ainda retornou à
Hogwarts pra terminar os estudos, tornando-se ministra da magia, enquanto Rony
e Harry coçavam o saco conformados com suas carreiras de aurores.
Arte de fridouw |
Além disso tudo, Hermione teve
duas representações com etnias diferentes, tendo sido branca nos filmes e negra
na peça de teatro "Harry Potter and the cursed child", representação
essa que foi validada pela J.K.. A reação de certos "fãs" foi de
racismo escancarado, mas a personagem está aí pelo menos. Hollywood sempre teve
uma tradição de "embranquecer" personagens por pura comodidade. A cor
da pele dela é o que menos importa, mas ainda acho que uma personagem negra que
não seja estereotipada deveria ser sempre bem-vinda pelo público.
E não podemos esquecer de quando
Mione nos presenteou com este singelo e magnífico momento:
Priceless.
4º lugar-
Catelyn Stark- Guerra dos Tronos, de G.R.R. Martin
Ai, ai, Guerra dos Tronos... Por
onde começar?
Não foi uma escolha fácil, por
que num livro com tantos personagens, sobretudo personagens femininas fortes
como Arya, Sansa, Daenerys, Brienne, Margaery e Olenna Tyrell, além de Lyanna
Mormont, aquela coisinha fofa e linda! Eu poderia fazer esse ranking apenas com
personagens da série de livros, mas não farei isso; não farei porque seria
muito repetitivo e porque minha preguiça não permite.
Bom, acho que agora tenho que
explicar porque, dentre todas as minhas opções eu escolhi justo a que talvez
passe mais despercebida pelos fãs, que é a Catelyn Stark.
Acho que
parte do ódio dos fãs pela Catelyn vem do fato dela nunca ter aceito John Snow
como filho de Eddard Stark, sempre tratando-o diferente dos outros, chegando ao
ponto de querê-lo longe do banquete de boas-vindas. Mas, sendo sincera, eu
também não gosto do John Snow; sempre pulei as partes dele nos livros. Nada
pessoal, só acho ele chato, chorão e sem-graça, como a maioria dos
protagonistas de séries de fantasia com uma miríade de personagens bem mais
interessantes. E vejam bem, por mais que tal tratamento seja desprezível, não
se pode forçar alguém a conviver ou gostar de outra pessoa à força.
Para
Catelyn, John não era só um bebê que o marido trouxe pra viver com eles, mas um
constante lembrete de sua infidelidade, algo de que ela não tinha poder para se
queixar num mundo em que as mulheres em sua condição se casavam apenas para
fazer alianças com reinos e procriar basicamente. Ela amava o marido e os
filhos e devia acreditar que seu lar era perfeito até isso acontecer. A maioria
das pessoas que a condenam provavelmente faria o mesmo na situação dela.
Outra
queixa é que ela tomou decisões questionáveis, como capturar Tyrion e deixar
Jaime escapar, além de tentar um acordo com os Frey. Mas, dadas as
circunstâncias e o conhecimento que ela tinha no momento, não eram decisões
ruins: todas as suspeitas da tentativa de assassinato de seu filho Bran caíam
em Tyrion, e ela esperava assegurar o bem-estar do marido e das filhas enquanto
eles estavam em Porto Real.
Na
verdade, se Ned Stark tivesse o mesmo bom-senso de Catelyn, talvez tivesse
sobrevivido mais um capítulo. Quanto a deixar Jaime partir, foi mais produto do
descontrole causado pelo luto de ter perdido o marido e acreditar que Bran e
Rickon estavam mortos. Além disso, após perder Tyrion como prisioneiro, ela
pretendia trocar Jaime por Sansa e Arya. Claro, nada sai como planejado e Jaime
escapa também enquanto Arya continua perdida e Sansa se casa com Tyrion.
Sua
última esperança era casar Robb com uma das filhas de Walder Frey, e isso
também dá errado, muito por culpa do filho, que não ouviu seus conselhos...
Catelyn
pode não ter sido a mãe perfeita, mas ela lutou até o fim para proteger seus
filhos, sua família e seu reino. A cena em que ela agarra a faca do assassino e
luta de mãos nuas com ele para defender o filho em coma foi pra mim o ato de
amor mais significativo que eu vi na série inteira. E foda-se quem me
disser o contrário.
No fim,
Catelyn, que sempre foi uma mãe amável e protetora para seus filhos, torna-se
Lady Stoneheart, um zumbi com coração de pedra, que vaga silenciosamente atrás
de vingar-se de todos que tiveram participação no casamento Vermelho, o evento
que acabara com a vida dela e do filho.
Considerando a quantidade de mães que apenas morrem na ficção, ainda é um destino bem
notável.
3º lugar-
C.L.B.- A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro
Ok, tirem
as crianças da frente do computador! E você, moleque criado à base de toddynho e que é
fã de polêmicas eleitoreiras, eu tô te vendo! Cai fora!
...
Agora que todos com idade mental
de até treze anos já foram embora, vamos falar de putaria:
Não é pra falar de putaria
nutella. Eu tô falando de putaria raíz, o tipo de putaria que não vende em
banca de jornal nem aparece em programinhas modernosos de televisão. Eu tô
falando do tipo de putaria que é preciso ter pelos menos meia dúzia de
neurônios funcionais pra entender.
A casa dos Budas Ditosos é um
livro escrito por João Ubaldo Ribeiro e publicado em 1999 numa série sobre os
pecados capitais. Não preciso explicar que o pecado de que o livro fala é a
luxúria. O livro é narrado todo por C.L.B., uma velha de sessenta e tantos
anos nascida na Bahia, e que, às voltas com uma doença que a matará,
envia a um escritor um pacote com a transcrição de fitas em que ela conta sobre
sua própria vida e de todas as peripécias sexuais em que se meteu. (hum, essa
frase saiu meio com duplo sentido, mas vou deixar assim mesmo). Na verdade, a
narradora não fala apenas de sexo, mas também de religião e de preconceitos
sociais relacionados ao tema.
Eu conheci esse livro pela
internet, numa época em que o livro da Bruna Surfistinha tinha acabado de ser
lançado e ficava exposto na Bienal do Livro. Eu estava terminando o
fundamental, nem sei se algum dos meus colegas mais espertinhos conseguiu a
chance de despistar a professora e dar uma conferida no "Diário do
Escorpião", mas depois de um tempo, quando a utilidade primeira da
internet finalmente ficou clara na minha mente, eu me lembrei desse livro. E eu
baixei, é claro. E não foi decepcionante, mas também não foi aquele suprassumo
todo que falavam. Já tinha fanfics melhores, na verdade.
Mas como um livro inevitavelmente
leva a outro, eu acabei me deparando com esse título e foi amor ao primeiro
parágrafo. Ou tesão, se preferir.
E sim, eu posso me considerar uma
feminista e gostar de um livro cuja personagem foi escrita por um homem, acho
que o problema não é esse. Podemos discutir a falta de reconhecimento às
autoras de ficção erótica, ou o quanto o João Ubaldo ainda deixa passar algum
resquício de sua própria visão masculina na personagem, mas eu considero a
primeira discussão mais válida que a segunda, pelo motivo de que eu acredito
ser praticamente impossível um autor anular a própria subjetividade ao
escrever, mesmo que ele se esforce muito. O texto sempre terá um quê da
personalidade ou das visões de mundo de quem o escreve, e pedir neutralidade da
arte é o mesmo que pedir que um cigarro seja livre de toxinas: tem boas
intenções, mas nunca funciona na prática.
Como o livro todo é escrito
através do fluxo de consciência dessa senhora, significa que a personagem narra
tudo da forma que lhe dá na telha no momento em que ela está falando. Desse
modo, não há capítulos muito divididos além do prefácio do autor, e a linguagem
é bem livre, com direito a erros de português, palavrões classudos e expressões
como "dou-lhe um banho de gato, putinha", que deve ser a sacanagem
mais engraçada e original que eu já li. C.L.B., ao contrário de muitas mulheres,
não se privou de descobrir e explorar sua sexualidade, fosse por padrões
machistas da época em que viveu ( cuja juventude deve ter sido nos anos 40 ou
50, mais ou menos), fosse por padrões meio desvirtuados do feminismo.
Ela se identifica como uma
libertina numa época em que isso não era moda, nem era muito possível em termos
mais práticos. E mesmo a fala dela contendo alguns traços de preconceito contra
negros, gays, lésbicas e mulheres, isso é perdoável pelo fato de que mesmo
estando à frente do seu tempo, ela ainda era uma mulher daquele tempo. E
não sejamos hipócritas: Quantos vovós e vovôs, ou até mesmo nossos próprios
pais ainda falam assim? É reprovável, mas não se pode simplesmente xingar as
pessoas de fascistas e preconceituosos e esperar que elas mudem. É preciso
educação e sensibilidade pra isso.
"E, de fato, é triste, acho que como ele
próprio ainda disse, viver numa sociedade em que a honra feminina é portada
entre as pernas, que coisa mais besta, meu Deus do céu. Mas, não é, não é? às
vezes me dá vontade de fazer um comício. Quantas vidas se perderam, quantos
destinos se estragaram, quantas tragédias não houve, quantos conventos não
foram abarrotados desumanamente, por causa da honra de tantas e tantas
infelizes?"
A própria C.L.B., em determinada
situação, chega a cogitar uma cirurgia de restauração de hímen, mas acaba
deixando de lado a ideia, denunciando a hipocrisia que até hoje existe entre
homens e mulheres, sempre com muito sarcasmo:
"Mulheres casadas diziam aos amantes -- e
muitas ainda dizem, suspeito eu -- que jamais fizeram ou fariam isso com o
marido, e os cretinos acreditam, não existe coisa de que homem se gabe mais do
que a amante fazer com ele o que não faz com o marido, tudo chute, armação.
Sexo anal, a mesma coisa etc. etc. Oh, é a primeira vez, devagar, tá? Grandes
atrizes se perdem todos os dias."
"Tudo o que ela fez, fez num tempo em que tudo
era bem mais difícil para as mulheres. Não que não fosse difícil para os homens
também e, sob outros aspectos, nunca deixei de ser solidária com os pobres dos
machos, acorrentados a uma porção de deveres esdrúxulos, desde não chorar até
enfrentar situações horripilantes, só porque eram machos."
Uma das partes mais engraçadas é
logo no começo, quando ela fala do próprio avô e explica o título do livro de
um modo que, de certa forma resume o espírito dessa obra:
"Meu avô materno era aristocrata,
elegantíssimo, falava francês e alemão fluentemente, esteve várias vezes na
Europa, era cultíssimo, mas, depois que passou de uma certa idade, peidava em
público. Assisti a ele peidar na frente do interventor, na época do Estado
Novo. O interventor tinha ido almoçar com ele e, depois do almoço, ficaram
conversando na sala de estar, com meu avô volta e meia levantando os quartos e
soltando vento aos trovões. Quando minha avó reclamava, ele dizia que o que
está preso quer ser solto e todo mundo peidava, inclusive o interventor, então
não era ele que, àquela altura da vida, ia arrolhar um peido. Quem quisesse que
arrolhasse, mas ele não.
Não cheguei ao ponto ótimo como meu avô, não tenho
coragem de fazer o que ele fazia em público, ainda estou amarrada a uma porção
de penduricalhos absurdos. É uma pena, porque memórias de uma libertina seria
tão melhor do que essa bichice dos Budas ditosos, mas não se pode ter tudo
neste mundo, tome-lhe Budas misteriosos."
Por toda a sinceridade, humor e
coragem para falar de sexo quando o tema ainda era um tabu é que C.L.B. está
nesta lista. E à feminista super-bem-informada que estiver nos comentários
louca pra chamar de biscoiteira e ao anti-feminista "Por Deus e pelas
armas" louco pra me chamar de retardada, faço dela as minhas palavras:
"Quem é burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue."
2º lugar-
Scout e Calpurnia- O sol é para todos, de Harper Lee
Acho que há uma exceção a frase
de Nelson Rodrigues, "Toda unanimidade é burra." Sim, porque até hoje
eu nunca encontrei alguém que não colocasse "O sol é para todos" como
um "must read" da literatura do século XX. Não sei, acho que é
preciso ser uma pessoa muito fechada de coração para não gostar desse livro, ou
ao menos reconhecer sua importância...
Ok, fora Homer Simpson, ninguém
discorda que seja um livro emblemático sobre o racismo e a inocência que todos
perdemos quando começamos a perceber o quanto o mundo é um lugar caótico e
cruel.
Scout, a protagonista do livro, é
uma garotinha de oito anos que mora numa cidadezinha rural chamada Maycomb e
passa os dias brincando com seu irmão Jem. Seu pai, o advogado Atticus Finch, é
tido como um herói por eles, por seu temperamento calmo e bastante racional e
seguro com as crianças, cuja mãe morreu quando Scout ainda era bebê. O problema
é que a cidade em que eles vivem esconde um terrível mal entre seus moradores,
ao qual Atticus chama "doença de Maycomb", e quando ele diz
"doença", acho que todos sabemos de que doença ele fala:
Apesar de tudo, Scout não tem
preocupações se não se adaptar à escola, onde a professora assim que descobre
que a menina já sabe ler, a rebaixa diante das outras crianças, dizendo que
simplesmente esqueça o que ela sabe pra que possa "aprender direito".
A menina volta arrasada pra casa, e seu pai lhe diz algo que serve pra qualquer
um de nós em qualquer idade:
Durante o livro, Scout amadurece
e percebe que Boo Radley, o vizinho misterioso a quem ela e o irmão tanto temem
e atormentam, na verdade é um homem bondoso que possivelmente sofre de
esquizofrenia, e por isso sai muito pouco de casa e acaba excluído da
vizinhança em torno. E as pessoas "decentes" são justamente aquelas
que mais criticam o jeito meio "moleque" de Scout se vestir e se
portar, além dos esforços de seu pai em defender Tom Robinson, um homem negro
acusado de ter estuprado uma mulher branca. Até o dia do julgamento, Tom fica
preventivamente preso, levando Atticus a precisar montar guarda em frente a
cela do homem, por motivos horrivelmente óbvios. E ele estava certo, porque um
grupo de caipiras armados aparece, dispostos a agradar a Raquel Sheherazade
e fazer "justiça com as próprias mãos". Mas eis que Scout e Jem
aparecem e Scout, no auge de sua inocência, desarma os linchadores com apenas
uma frase:
"— Olá, Sr. Cunningham. Parecia que o homem
não tinha me ouvido. — Olá, Sr. Cunningham. Como vai o seu morgadio? Os
negócios do Sr. Cunningham me eram familiares. Houve até um dia em que o
Atticus me explicou tudo em pormenor. Aquele homem imenso pestanejou e enfiou
os polegares nas presilhas do macacão. Parecia desconfortável. Pigarreou e
desviou o olhar."
Depois disso, a multidão se
dispersa. No dia seguinte, Scout questiona o pai a respeito:
"O Atticus pousou o garfo ao lado da faca e empurrou o prato para o lado. — Basicamente o Sr. Cunningham é um bom homem — disse — só que, tal como todos nós, tem os seus momentos de cegueira.
— Não chame aquilo de cegueira. Quando ele chegou
lá estava pronto pra te matar — interrompeu o Jem.
— É até provável que me fizesse mal — admitiu o
Atticus — mas vai acabar percebendo melhor as pessoas quando for mais velho,
filho. Acima de tudo um bando é constituído por pessoas. E todos os bandos de
todas as nossas cidadezinhas do Sul são constituídos por pessoas que nós
conhecemos... e isso não quer dizer nada sobre elas, né?"
Num episódio particularmente
triste, a tia das crianças diz que Scout tem que parar de brincar com Walter
Cunningham, chamando-o de lixo por ser de uma família pobre. A menina chora e
ao conversar com o irmão, conclui, brilhantemente:
"Só existe um tipo de gente: gente."
Calpurnia é outra personagem
desse mesmo livro que eu resolvi colocar nesse mesmo lugar porque ela é tão
admirável quanto: a velha Cal, como às vezes é chamada pelas crianças, é a babá
delas, conduzindo com mão de ferro a casa e o bem-estar geral. Mas não só esse
papel é delegado a ela, como também uma certa condução moral de Scout e seu
irmão Jem. Quando a menina convida um colega de classe para vir almoçar e acaba
por constrangê-lo, por exemplo:
"O Walter encharcou generosamente os legumes e
a carne com o melaço. Provavelmente também o teria colocado no copo de leite,
se eu não lhe perguntasse que raio é que estava fazendo. A travessa de prata
tilintou quando ele colocou o jarro sobre a mesa. Ele rapidamente pôs as mãos
no colo e baixou a cabeça. [...] Foi então que a Calpurnia exigiu a minha
presença na cozinha. Ela estava furiosa, e quando estava furiosa, a sua
gramática tornava-se errática. Mas quando estava tranquila, a sua gramática era
tão boa como a de qualquer habitante de Maycomb. O Atticus dizia que a
Calpurnia era mais instruída do que a maior parte das pessoas de cor.
Quando ela me olhou com aquele olhar estrábico, as
pequenas linhas em volta dos seus olhos ficaram mais carregadas. — Hás pessoa’
que num come como nós — sussurrou ela violentamente — mas você num tem o
direito de os deixar ficar mal à mesa quando são diferente. ’Quele moço é seu
convidado e se quiser até pode comer a toalha, entendeu?"
Como fica claro pelo trecho, ela
era uma mulher negra e letrada, algo incomum para aquele lugar e época. Sem
falar que foi Calpurnia quem ensinou Scout a ler antes mesmo de estar na
escola. Sobre isso, ela afirma:
Por serem duas personagens tão
incríveis e dispostas a desafiar os destinos traçados para elas desde o berço
além de superarem os próprios preconceitos e os preconceitos alheios, é que
elas entram com louvor nesta lista.
Eu poderia ir em frente tecendo
elogios a esse livro, mas estou ficando redundante. Vão ler, vão! Ou assistam o
filme que também é muito bom.
E agora, o momento mais aguardado
deste artigo: a personagem feminina que eu mais admiro dos livros é...
1º
lugar- Scarlett O'Hara- E o vento levou, de Margareth Mitchell
[Falando em arrependimentos... Por favor, sigam até o fim do artigo.]
É.
Vamos lá...
"Scarlett O'hara não era linda, mas os homens
raramente se davam conta disso quando enredados por seu encanto [...]"
A primeira frase do livro a
descreve com perfeição, pois Scarlett é a filha mais bela de um fazendeiro
sulista da Geórgia, e seu maior passatempo na vida é encantar os homens e
deixá-los babando aos seus pés para logo em seguida, desprezá-los com toda a
frieza. Na verdade, ela não faz isso tão conscientemente assim, mas também não
disfarça seu prazer com isso:
"O vestido se ajustava com exatidão à cintura
de 43 centímetros, a menor em três condados, e o corpete justo revelava seios
maduros para seus 16 anos. Mas, apesar de toda a modéstia das saias espalhadas,
do recato do cabelo preso num coque suave e da tranquilidade das pequenas mãos
brancas cruzadas sobre o colo, sua verdadeira personalidade não ficava oculta.
Os olhos verdes no rosto meigo eram turbulentos, voluntariosos, cheios de vida,
em desacordo com o ar decoroso. As boas maneiras lhe haviam sido impostas pelas
gentis repreensões maternas e pela disciplina mais severa de sua babá negra,
Mammy; os olhos, porém, lhe pertenciam."
Acontece que além de voluntariosa
e mimada, Scarlett era também apaixonada por um cavalheiro das redondezas, o
nobre e plácido Ashley Wilkes, à despeito dele estar praticamente noivo de uma
prima dele, Melanie. Na verdade, ela tem certeza de que ele a ama em segredo, e
para provar isso, resolve confrontá-lo a sós em seu churrasco de noivado. A
reação dele é obvia, e Scarlett acaba sendo deixada na sala, sozinha e
envergonhada ao descobrir que Rhett Butler, um aventureiro tido por todos um
patife a ouvia se declarando para o bobalhão do Ashley:
"Ele evidentemente ouvira toda a conversa,
pois sorriu para ela tão malicioso quanto um gato, outra vez lhe passando os
olhos com uma intensidade que totalmente destituída da deferência a que ela
estava acostumada. "Pelo manto de cristo!" disse Scarlett para si
mesma, indignada. "Ele dá a impressão de... de saber como eu sou sem a
roupa de baixo"[...]"
Mesmo assim, sua certeza de que o
tão idealizado cavalheiro pode vir a amá-la toma conta de todas as suas
esperanças, e ela poderia passar o livro todo apenas movendo os céus e o mundo
para conseguir seu objetivo, mas eis que acontece a guerra...
A Guerra Civil Americana foi o
conflito que mais matou norte-americanos: "Para uma comparação
breve: morreram mais de 600 mil norte-americanos na Guerra Civil; já na famosa
Guerra do Vietnã, o número de baixas oficiais foi de 58 mil mortos." (fonte). E, como sempre, não só os soldados
sofrem, mas também toda a população. A partir desse ponto, a vida de Scarlett
dá uma virada completamente, pois Ashley parte para a guerra e lhe pede que
cuide de Melanie, sua esposa agora, e do filho que ela espera.
Apesar de todo o ódio por sua
rival, a quem julga como uma mulher fraca e sem graça, Scarlett cumpre sua
promessa, chegando mesmo a fazer o parto de Melanie, que retribui sua
fidelidade forçada com a mais sincera amizade, para seu desgosto.
Após um parto difícil, Melanie
fica enfraquecida e impossibilitada de caminhar, deixando Scarlett de mãos
atadas enquanto o ianques avançam pelo território. E de fato, tudo estaria
perdido se não fosse por Rhett Butler aparecer com uma carroça a noite,
alertado pela escravinha de Scarlett. Ele as deixa perto da fazenda dela e
parte para lutar também, comovido pelos esforços dos sulistas. Scarlett é
deixada com a rival enfraquecida, o filho dela e Prissy, uma escrava medrosa,
apenas tendo a carroça em um cavalo, que morre de exaustão ao chegarem em casa.
Casa essa que ela encontra em ruínas, além de encontrar as duas irmãs doentes e
o pai louco pelo luto da esposa, mãe de Scarlett, que morreu um dia antes dela
chegar. Como desgraça pouca é bobagem, os ianques invadiram a fazenda e levaram
todos os patos, perus, galinhas e animais, todas as colheitas, praticamente
toda a comida que eles tinham.
Faminta, ela desenterra um dos
poucos legumes que sobraram na lavoura e o devora, praticamente junto com a
terra e tudo. E ela então se levanta e profere as palavras que seriam depois
usadas por dezenas de mocinhas "vingativas" das novelas do Walcyr Carrasco:
Para Scarlett, só resta olhar
para os poucos escravos que ficaram e o que restou de sua família e imaginar o
que fariam no dia seguinte:
"Via as coisas com novos olhos, pois, em algum
ponto ao longo da estrada para Tara, ela abandonara sua infância. Já não era
como o barro moldável, no qual cada experiência deixava uma marca. O barro
endurecera em algum momento desse dia que durara mil anos. Essa noite era a
última vez em que seria cuidada como uma criança. Agora era uma mulher feita, e
a juventude ficara para trás."
Diante do desespero, ela relembra
os antepassados e busca força neles:
"Todos sofreram infortúnios esmagadores e não
foram esmagados. Não se deixaram abater pela queda de impérios, pelos facões de
escravos revoltados, por guerra, rebelião, proscrição, confisco. [...] Eles não
se lamentaram, mas, sim, lutaram. E ao morrer, morreram cansados, mas não
vencidos. Toda aquela gente, cujo sangue lhe corria nas veias, parecia estar se
movendo silenciosamente no quarto iluminado pela lua. E Scarlett não se
surpreendeu por vê-los, esses antepassados que haviam suportado o pior que o
destino podia lhes reservar e o tinham transformado em algo melhor. Tara era
seu destino, e ela ia conquistá-la. Tonta, ela se virou de lado, uma escuridão
se insinuando e lhe envolvendo a mente. Estariam realmente ali, sussurrando um
mudo encorajamento, ou aquilo seria um sonho?
-Estejam aqui ou não- murmurou ela, adormecendo- ,
boa noite... e obrigada."
Após isso, ela trabalha noite e dia para reerguer
Tara, sua fazenda, e alimentar seus familiares e escravos. Como ela é astuciosa
e não se importa tanto assim com os padrões de decência da época, ela se
envolve em algumas trapaças, como contratar presidiários para suas serrarias,
casar com o pretendente da própria irmã apenas por interesse financeiro, e etc,
etc. Mas para todas essas ações, Scarlett tinha a justificativa de nunca mais
tornar a passar fome como ela e todos haviam passado. E apesar de demorar umas
900 páginas para que ela esquecesse Ashley e reconhecesse o amor que Rhett lhe
devotava, ela corre até no instante em que percebe o engano fatal que cometera.
Ela corre e encontra um Rhett cansado de insistir, cansado de ser relegado a um
segundo plano. Aos prantos, ela lhe pergunta o que fará da vida sem ele, ao que
ele lhe responde com a tão famosa frase:
"Ela nunca entendera nenhum dos dois homens
que amara e assim perdera ambos. Agora, reconhecia ligeiramente que, se tivesse
compreendido Ashley, nunca o teria amado; se tivesse compreendido Rhett, nunca
o teria perdido. Infeliz, ela se perguntou se alguma vez compreendera alguém
nesse mundo."
Desorientada, ela vaga pelo hall
da casa que ela e Rhett dividiam, até que algo eleva seu ânimo, a mesma coisa
que a manteve de pé apesar de todos os problemas ao redor:
"Com o espírito de sua gente, que não
reconhecia a derrota, mesmo a encarando de frente, ela ergueu o queixo.
Conseguiria Rhett de volta. Sabia que conseguiria. Nunca houvera um homem que
não tivesse, caso se concentrasse nisso.
Penso nisso amanhã, em Tara. Vou aguentar então.
Amanhã vou pensar em algum modo de tê-lo de volta. Afinal, amanhã é outro
dia."
Muito pode ser dito sobre
Scarlett, e eu reconheço que a personagem não é unanimidade, muito menos a obra
de Margareth Mitchell, sobretudo no que diz respeito aos estereótipos de
escravos felizes e satisfeitos com seus "donos". Além disso, tem o
retrato que faz das mulheres, ora como a protagonista, que seduzem e manipulam
os homens através da beleza, ora como a rival dela, que é submissa e uma esposa
perfeita e devotada em todos os sentidos.
Eu reconheço que tudo isso é
controverso, mas eu acredito que não se pode ignorar a época em que o livro foi
escrito: Era 1936, e os Estados Unidos ainda sofriam os efeitos da quebra da
bolsa de 29. Muitos podem ter encontrado nesse livro um retrato de um país que
já não existia e que, de fato, nem deveria afinal. Mas eu acredito que a
maioria não proclamou este livro como um dos grandes clássicos americanos por
pura nostalgia racista, mas sim pela força que emana da personagem principal: Scarlett
é brava e impetuosa, ela vai atrás do que ela quer e aí de quem tentar
impedi-la. Ela é praticamente uma força da natureza.
"Quando Scarlett desenterra aquele rabanete no
jardim arrasado de Tara e jura a Deus que ela nunca mais passaria fome de novo,
ela estava voz a cada americano que havia sofrido necessidades e medo durante
os anos de Hoover." (fonte)
É verdade que em certas ocasiões
ela cai no estereótipo da "megera domada", uma mulher de
temperamento forte que precisa de um homem para colocá-la no seu lugar. Mas a
bem da verdade, todo mundo às vezes precisa de alguém de fora da situação e que
confronte com outras perspectivas, isso não é apenas com mulheres. Até porque,
Scarlett nunca muda ao longo do livro inteiro, sua única mudança é a
compreensão de amor que ela nunca realmente tinha entendido desde criança. Sua
criação mimada a fez acreditar que amava tudo aquilo que não possuía, enquanto
despreza a felicidade que estava ao seu pleno alcance. De certa forma, sua
força também era sua fraqueza, e é isso o que faz um personagem ser marcante.
Afinal, quantos de nós não cometemos o mesmo erro alguma vez?
Por toda sua perseverança e
espírito inquebrantável, Katie Scarlett O'hara é a melhor personagem feminina
que eu já li até agora. Se você não concorda, deixe seu comentário! Afinal,
amanhã é outro dia. [Editado: Agora em 2020, eu realmente acho que me equivoquei muito nessa escolha. Esse livro é bastante racista e a protagonista igualmente. Não vou apagar isso e fingir que nunca pensei assim porque acho importante deixar claro que eu não sou perfeita e nem quero tentar ser. Talvez eu escreva outro artigo no futuro, mas se você ainda estiver aqui lendo isto, então fique com esse vídeo e a recomendação de leitura no lugar desse livro: Se chama "The Wind done gone" e é uma releitura da história pelo ponto de vista de Cynara, uma meia-irmã de Scarlett, filha do dono da plantation com a escrava Mammy. O livro subverte a visão nostálgica e benevolente da escravidão que emana de "E o Vento Levou" e coloca o tema como realmente é: uma violência.]
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