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terça-feira, 2 de abril de 2019

Olhos D'água e O Sol na Cabeça: Uma análise sobre o racismo estrutural - Parte 1



    ....

    Então... Antes de começarmos, eu acho que preciso dizer que, se alguém ainda não tiver percebido, eu sou uma mulher branca.

    Pois é.

    Acho que depois da minha lista de melhores personagens femininas isso não poderia ter ficado mais perceptível. Quero dizer, quais as chances de uma garota não-branca fazer uma lista de personagens que mais admira colocando Scarlett O'hara, a protagonista proprietária de escravos em "O vento levou", acima de Scout e Calpúrnia, as personagens de "O sol é para todos"?


"Eu fiz por merecer esse chapéu" diz a autora deste blog


    Em minha defesa, eu digo que minha lista de leituras, principalmente com mulheres protagonistas  era muito menor há um ano atrás do que ela é hoje, acreditem. Além disso, a lista era de personagens que "eu mais admiro" e admiração é uma coisa muito subjetiva. Mesmo assim, perceber que eu "admirava" uma personagem fictícia escravocrata, é preocupante e bizarro, mas acaba fazendo todo o sentido quando se considera o tanto de vezes em que racismo é retratado na ficção e as pessoas "perdoam" personagens como esses.

Dom Sabino, o dono de escravos "do bem" da novela "O tempo não para"

    É a velha máxima do "ele tinha escravos, mas era bom com eles, tratava bem". Contexto histórico é uma coisa a ser considerada nesses casos, mas uma afirmativa como essa é no mínimo "questionável". Como pode alguém que ser "dono" de outro ser humano e ser considerado "bom", apesar disso? Mesmo se a intenção é comparar com as atitudes de "outros donos", isso é por si só uma naturalização da escravidão, como se isso fosse minimamente justificável.

Prissy e Scarlett em "O vento levou"


    A questão que fica é: É mesmo possível apreciar os pontos fortes de uma personagem e ainda assim condenar seus aspectos "problemáticos"? Bom, eu penso que é possível gostar de um determinado filme ou livro, mas saber que no fundo, essa coisa é uma bosta. Até porque, se não fosse desse modo, apenas garotinhos reacionários com fortes tendências fascistas e meritocráticas seriam capazes de apreciar um  personagem como o Batman, por exemplo.


    O que eu aprendi com isso foi que não importa o quanto eu já tenha ouvido sobre racismo e seus efeitos nocivos, nem que eu mesma não queira ser racista. Não adianta muito eu vir aqui e dizer "não sou racista", por mais que eu queira acreditar nisso porque o racismo vai muito além de um sujeito que tem uma suástica pintada no quarto e xinga ou agride pessoas negras: ele está entranhado no ambiente social e na forma como aprendemos sobre o mundo. A isso, dá-se o nome de racismo estrutural. Quando lemos um livro ou ouvimos uma piada que começa com "um homem recebeu três visitantes em sua casa", automaticamente infere-se que esse sujeito seja branco. Entendem o que eu quero dizer? A gente é racista sem nem perceber. O que, é claro, não significa que não se deva combater esse problema.




    Como as youtubers Rosa Maristela e Natália Romualdo, do canal Papo de Preta, explicam muito bem no vídeo acima, o racismo vai além de um xingamento ou um apelido. Eles está escondido nas camadas mais profundas das sociedades em que a escravidão e a desigualdade social encontraram terreno fértil e nenhum combate. Felizmente, isso está mudando.


    Conceição Evaristo, autora mineira de renome, nascida numa favela em Belo Horizonte, aos 71 anos foi cogitada como candidata à 7ª cadeira da ABL no ano passado com grande apoio de nada menos que 6,5 mil pessoas e mais de 40 mil assinaturas em duas petições online, além do apoio de internautas com uma hashtag. Infelizmente, como a vontade popular não manda na votação da Academia, ela foi preterida pelo cineasta Cacá Diegues. De fato, apenas ele e o colecionador Correa Lago tinham reais chances de vencer, mostrando aos incautos que a ABL e o Oscar estão mais para "clubes de amigos" do que premiações de verdade. A fala da própria Conceição só ilustra esse fato:

“Se eu entrar, não será porque escrevi um ‘Marimbondo’ do Sarney, não [romance que levou o ex-presidente à ABL, em 1980]. Eu quero entrar porque é um lugar nosso, porque temos direito.” (fonte)

"Aquele livro que quando você larga, não consegue mais pegar" Fernandes, Millôr.


    Além de "Olhos D'água", coletânea de contos premiada com um Jabuti, a autora também escreveu dois romances, uma coletânea de poemas e três de contos, além de participações em treze antologias internacionais. Ela também é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.



    Olhos d'água, de 2014, traz quinze contos com foco na vivência de personagens afro-brasileiros, a maioria mulheres pobres, em ambientes urbanos marcado pela falta de recursos e pelas lutas constantes pela sobrevivência. Seu estilo tem uma sensibilidade que permite ao mesmo tempo passar a dificuldade desse mundo e as pequenas alegrias e encantos escondidos nas coisas triviais das relações humanas.

    E sim, eu vou analisar mais profundamente os contos dessa coletânea, assim como os contos do Geovani Martins, mas antes, um pouco de contexto:

O mito da "Democracia Racial" e a formação das favelas brasileiras




    Já é praticamente um clichê falar que a formação das favelas no Brasil se confunde com a própria formação do país, mas esse clichê é muito verdadeiro quando consideramos que as favelas nada mais são do que isso: o resultado de anos de exclusão social agravada pela falta de moradia e de acesso aos meios de transporte nas grandes cidades:

"Há exatos 120 anos surgia a primeira favela brasileira, que ainda não era chamada desta forma. O pequeno assentamento, formado inicialmente por ex-escravos, ganhou a partir de 1897 uma grande quantidade de novos moradores, criando uma verdadeira comunidade. Localizada no atual Morro da Providência, no Rio de Janeiro, a ocupação inicialmente se restringia a algumas dezenas de casebres, que ao longo do ano receberam mais de 10 mil novos vizinhos, em especial ex-soldados que retornavam da Guerra de Canudos. Os primeiros moradores do assentamento no eram habitantes do antigo cortiço “Cabeça de Porco”, que havia sido demolido tempos antes. 

[...] A justificativa para a ocupação há 120 anos é a mesma dos dias atuais, a falta de moradias. Os ex-soldados tinham a promessa que ao retornarem da batalha receberiam o soldo, mas o valor nunca foi pago. Sem dinheiro e local para morarem, eles invadiram um trecho do morro, onde ficava uma chácara abandonada. " (fonte)



    Favela na verdade era o nome de uma planta que encobria a região do morro onde estava Canudos na época, e que os soldados acharam semelhante a uma planta no morro onde se instalaram.

    Além disso, um fator muito importante na formação das favelas foi exatamente o tipo de tratamento destinado aos novos trabalhadores disponíveis no mercado já às portas do século XX, os ex-escravos:


Vendedora de bananas


"'O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na época de retardão.[...]
O (momento) pós-emancipação não teve nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais.
Mas isso não quer dizer que a gente só deva culpar o passado. O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural."
Lilia Schwarcz, professora do departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (fonte)


    Nascida da truculência do Estado pressionado pela Igreja e por latifundiários contra uma comunidade, formada por esses mesmos homens feitos de instrumento e depois descartados, soldados e escravizados libertos integrando uma massa de pessoas com as quais o governo nada queria além de distância e cuja maioria das ações tomadas era de "higienização urbana".  Eis a receita lamentável do cotidiano atual.



    Favelas existem em todos os estados praticamente, mas de certa forma, as pessoas sempre se lembram mais das favelas cariocas. Um dos motivos para isso acontecer, eu imagino é porque o Rio é a cidade com maior população morando em favelas do Brasil. Também é do Rio o recorde de maior favela do Brasil, a Rocinha, só perdendo para a comunidade Sol Nascente, no DF e para, olha só, que coincidência, Rio das Pedras, outra favela carioca, mas eu estou me adiantando...

    Além disso, não é segredo pra ninguém que essa é uma região altamente valorizada pelo turismo e pela especulação imobiliária. Então, quando se fala em Rio de Janeiro, a primeira imagem que se tem é a de samba, carnaval, ou bunda. Em segundo lugar, vem as praias, com maravilhosos hotéis, e então, a versão "Cidade de Deus" das favelas, onde traficantes de grupos rivais, moradores e policiais entram em confronto quase todo dia.



    Sendo uma habitante típica do interior do estado do Rio, tenho que admitir que esses clichês sobre a Cidade Maravilhosa também estão bem entranhados no meio cérebro. E não é que esses clichês não tenham um pé na realidade, mas nenhum lugar é apenas a imagem que se tem dele. Existem muitos outros pontos não considerados sobre a capital brasileira mais confundida pelos gringos como a "capital federal", e os dois livros dessa resenha mostram muito bem isso, captando as particularidades desses ambientes, as falas, as gírias, o modo de vida.


    No conto que dá nome ao livro, a narradora percorre toda a trama relembrando reminiscências de sua infância com a mãe, e se perguntando por que, apesar de todas as recordações felizes que possui a respeito, ela não conseguir se lembrar da cor dos olhos da figura materna:


"Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto da nova casa em que eu estava morando e não conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite, se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Então eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?"

    Essa pergunta carrega a personagem por todo o conto, se tornando cada vez mais aflitiva à medida que ela avança pelas dificuldades enfrentadas por sua mãe para manter ela e seis irmãs a salvo e felizes mesmo estando em um barraco durante um temporal:


"Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?"




    Sem querer dar spoilers, porque eu acho que esse conto não será experimentado da mesma forma sem uma leitura completa, eu diria que o tema que perpassa a narrativa num primeiro momento pode parecer apenas "maternidade", com todas as alegrias e sofrimentos envolvidos. Num segundo momento, o leitor pode muito bem concluir que "reconectar-se com o passado é outro tema", mas eu iria além: quando a narradora se pergunta "de que cor eram os olhos de minha mãe", ela não está literalmente questionando isso: basta lembrar que os olhos são comumente associados à "janelas da alma", tendo assim uma conexão direta e profunda com o caráter de sua dona. E quanto a perguntar qual a cor das janelas da alma de sua mãe, a narradora está se indagando algo que vai muito além de sua progenitora: a questão da ancestralidade.



    Falar de ancestralidade e identidade negra no Brasil passa necessariamente pelo fato histórico de que a maioria da população negra no país descende de pessoas que foram trazidas contra a vontade para cá e escravizadas. E esse processo destruiu a identidade de muitas dessas pessoas: povos de diferentes lugares da África, com diferentes idiomas e culturas eram colocados juntos propositalmente, enquanto famílias e grupos inteiros eram separados antes, durante e depois de serem transportados por navios negreiros. Tudo feito para dificultar a comunicação e o entendimento nesses grupos, minando qualquer chance deles se revoltarem e virarem o jogo. Arrancados e despidos de suas próprias culturas, os negros escravizados tiveram que recriar o pouco que traziam de suas tradições, sua espiritualidade, sua linguagem, vestuário, tudo. Cultura pode parecer algo descartável por esses tempos de globalização e acesso facilitado a viagens, mas, para pensar: muito de quem você é, é resultado direto de onde você viveu. E quando isso é tirado de você, uma boa parte do seu senso de identidade desaparece junto.


    Pra dar um exemplo, imagine se alguém chegasse e te arrancasse do seu país, levasse você contra vontade pra um lugar totalmente diferente, onde você não conhecesse nada, nem ninguém, e limitasse seu acesso a pessoas do mesmo lugar onde você viveu sua vida toda; sem notícias, sem conexão wi-fi, nada... Não é difícil pensar no que aconteceria nesse caso: depois de certo tempo, sua cultura seria progressivamente substituída e até mesmo esquecida, conforme gerações morrem e nascem.


    Diferente da ideia bastante equivocada e ensinada às crianças de que o Brasil foi formado por três etnias (europeus, indígenas e negros) convivendo em perfeita harmonia, o mito da democracia racial foi a tentativa ideológica de negação dessa herança de sofrimento, exclusão e violência. E isso não é de hoje:
"[...] desde o final do Segundo Império e início da República já se acreditava que o Brasil teria escapado do problema do preconceito racial. Explica que tal concepção tem origem na comparação feita com a situação racial observada nos Estados Unidos da América daquela época."(fonte)



    Negacionistas do racismo não são crias apenas dessa nossa era, mas sim pessoas que, querendo ou não, serviam ao propósito bem claro (ai meu Deus, trocadilho agora não) de promover o embranquecimento do povo brasileiro. Eugenistas previam que, diferente do que ocorria nos EUA, com a miscigenação entre povos daqui, logo os "caracteres negros" dos brasileiros se diluiriam, desaparecendo na forma de uma população com traços majoritariamente brancos. Ou seja, diferente do que alguém estupidamente possa ter aprendido no ensino fundamental, ao fornecer condições, terras e educação para imigrantes europeus, negando essas mesmas prerrogativas a negros e indígenas, o objetivo nunca foi "promover a comunhão entre os povos que aqui viviam" ou buscar "trabalhadores mais qualificados", mas sim o de "melhorar a aparência da população brasileira".


    Voltando à interpretação do conto, não, eu com certeza não fui a primeira a chegar nessa conclusão. Na verdade, estava bem na cara mesmo e eu levei quase uma semana pra enxergar essa simbologia. (!)



   O desfecho do conto é um misto de melancolia e encantamento, apontando para um reconhecimento da herança remanescente da narradora, na forma como muitas pessoas como ela tiveram para preservar suas raízes através da transmissão oral de histórias. De fato, a própria autora fala em diversas entrevistas sobre como se inspirou em vários desses relatos e histórias antigas que ouvia das mulheres em sua família:

"Aprendi a lição de fortaleza com essas mulheres, que não tinham formação escolar completa e aprofundaram o processo de alfabetização na medida em que se tornaram responsáveis por criar uma geração de filhos e sobrinhos. Não falo da "fortaleza" incutida no imaginário que se tem de um povo negro que não sente dor, que está sempre a cantar, que tem uma alegria já por herança... Esse imaginário não nos reconhece como seres humanos, com alegrias, tristezas, solidão. Esse imaginário retira nossa vulnerabilidade humana. Essa ideia de fortaleza a gente não reconhece.
A gente reconhece a fortaleza que criamos na resiliência, que nos agrega, que nos salva. Sem essa fortaleza, sem a criação de táticas de sobrevivência, a nossa ancestralidade morreria nos próprios porões dos navios (negreiros)." (fonte)

    Outro ponto que a Conceição Evaristo levanta nessa entrevista é sobre como os autores negros muitas vezes acabam preteridos ao falar de suas próprias vivências, pois a visão do negro sobre sua própria história, sua cultura, muitas vezes acaba sendo interpretada como "vitimismo", ao passo que uma obra escrita sobre o mesmo assunto por um autor branco não recebe esse estigma:

"A temática negra, principalmente quando trabalha com identidade negra, não é muito bem aceita.
Quando a temática negra trata do folclore, ou não é tão reivindicativa, aí interessa. Mas quando questiona as próprias relações raciais no Brasil, é quase um tema interdito. Principalmente se isso é colocado pela própria autoria negra. Até então, os brancos podiam dizer a nosso respeito. Mas quando a gente se apropria do nosso discurso, da nossa história, isso é motivo de interdição."

    É péssimo ver que mesmo a literatura considerada progressiva quanto à aceitação da diversidade muitas vezes pode se mostrar excludente quanto a quais autores e quais aspectos acabam sendo explorados em detrimento de outros. Esse é um ponto que muita gente se nega a ver, repetindo platitudes como a de que "somos todos seres humanos", como se séculos de exploração e opressão direta e velada não fizessem a mínima diferença.

    Mas esse é um problema que vai bem mais além, tem muito a ver não só com o racismo presente na formação da nossa identidade, mas também com o modo como desenvolvemos nossa visão de mundo. Afinal, já pararam para pensar em quantos dos chamados "Clássicos da Literatura Universal" são livros escritos por brancos europeus de 1500 a 1800 e bolinha, geralmente por autores da Alemanha, França, Inglaterra ou Rússia? Seria esse um sinal do quanto esses lugares foram "abençoados" com prodígios da escrita, ou seria mais um reflexo da nossa tendência eurocêntrica? Falando nisso...

A literatura "Universal", colonialismo e o complexo de vira-lata


    Eu sei que esse artigo já é enorme com todos os tópicos abordados, mas eu senti que isso não seria complexo sem que algumas coisas fossem ditas a respeito do conceito de "universalismo" na literatura e como isso está de certo modo ligado ao modo como as potências europeias dominaram o cenário mundial do século XV em diante. Mas primeiro, acho melhor começar pelo aspecto literário do problema.

    Pode-se definir o universalismo como a tendência a buscar conclusões generalizantes partindo de uma premissa particular. É encontrado em praticamente todas as escolas literárias. É basicamente como alguém que analisa uma obra procurando extrair uma espécie de "lição de moral" daquilo. Nada de errado em se fazer isso, mas para quem já leu minhas outras resenhas vai perceber que em muitos casos isso se torna impraticável: livros como Alice no País das Maravilhas, por exemplo, não tem exatamente uma moral que se possa apontar como sendo a mensagem principal. Existem várias interpretações para as maluquices do livro, e muitas delas são bastante literais na verdade, tendo origem em diversas questões muito específicas da sociedade e política inglesas da época. Tomando como base a literatura brasileira, o universalismo faria um contraponto ao regionalismo, que é tendência muito mais marcada a abordar o que é específico de um lugar, um tempo, uma região.

    Assim, enquanto muitas histórias de Machado Assis poderiam ser transportadas para outros tempos e lugares sem perder muito conteúdo, Vidas Secas nunca seria o mesmo se transportado para outro ambiente, mesmo que semelhante: ali estariam outras marcas e outros vocábulos, outros modos de viver tão entrelaçados na história que ela não seria a mesma caso se passasse no Arizona ao invés do sertão nordestino.

    E antes que isso caia para uma falsa dicotomia, vale lembrar que existem aspectos universais em obras regionais, uma coisa não exclui a outra necessariamente, nem pode servir de comparativo para apontar um "maior" ou "menor" valor da obra.


"A expansão do romantismo deu lugar a um entusiasmo historicista que duraria do século XIX e grande parte do século XX. Nesta altura, Goethe criou a expressão "literatura universal", que expressa a compilação das melhores obras literárias de significação que vai além das condições nacionais." (fonte)

    Então, mais ou menos o que acontecia na época em que o termo foi cunhado, é que ocorriam altos paranauês nos diversos estados alemães pré-unificação. Mesmo com o término do domínio napoleônico sobre esses estados, a Alemanha permaneceu repartida, contrariamente aos ideais patrióticos. Mas, diferente do que acontecia antes, o mundo passava por uma transformação, algo que aos poucos diminuía as distâncias entre povos e regiões, facilitando o acesso a mercadorias e culturas de diferentes lugares. Sobre isso, o poeta afirmou:
“Cada vez mais me convenço (…) de que a poesia é uma propriedade comum à humanidade, que por toda a parte e em todas as épocas surge em centenas e centenas de criaturas. (…) Apraz-me por isso observar outras nações e sugiro a cada um que faça o mesmo. A literatura nacional não significa grande coisa, a época é da literatura mundial e todos nós devemos contribuir para apressar o surgimento dessa época.”(31 de janeiro de 1827). (fonte acima)

    O que podemos ver pela fala do escritor alemão é que ele previu a globalização em marcha já naquela época, e a essa tendência, formulou o termo "Literatura Universal", que nada mais é do que a união de todas as obras valorizadas desse período em diante, possuindo algum grau de individualidade por suas origens, mas também ressaltando o que essas diferentes culturas têm em comum. Quase como um inconsciente coletivo do Carl Jung, mas com livros.

    Então, num período em que a literatura florescia numa espécie de "aldeia global", não precisa ser um gênio pra saber porque literatura vinda de países que historicamente foram colônias europeias não constava no grupo "Clássicos da Literatura Universal". E não é por falta de livros, na verdade.

Arte de Backforward24

"Estamos culturalmente unidos ao continente africano por razões históricas. No entanto, séculos de atraso econômico, resultado de exploração e de políticas inadequadas, forçaram uma tentativa de esquecimento e anulação dessa herança. Retomá-la é fundamental para o conhecimento de nós mesmos." Ludmylla Mendes Lima

    A tendência Eurocêntrica moldou o nosso olhar sobre a literatura. É por isso que Guerra e Paz é um romance reconhecido mundialmente, enquanto que se alguém puder citar alguma obra de origem africana ou asiática amplamente conhecida, precisará ser muito mais que um leitor ocasional. E mais do que dificultar a produção e o acesso de obras que refletem a cultura e os valores de outras etnias além da branca, o legado que o colonialismo deixou para os países que estiveram sob seu jugo foi o subdesenvolvimento com barreiras quase intransponíveis que se perpetuam através dos tempos:

"O processo que levou à partilha colonial de regiões africanas e asiáticas, criando países fictícios, culminou em longas batalhas por independência. Gerou também, como consequência, movimentos separatistas, conflitos étnicos e religiosos, e guerras civis, com reflexos que perduram até os dias de hoje." (fonte)

Ataque do Boko Haram deixa cinco mortos em Camarões. Os conflitos desde 2013 já causaram a emigração de 200 mil pessoas. (fonte)


    Nesta altura, alguém lendo este artigo poderia simplesmente citar os Estados Unidos como um exemplo de colônia que escapou desse destino, mas eu não preciso lembrar ninguém de que os Estados Unidos NÃO FORAM UMA COLÔNIA DE EXPLORAÇÃO. Porra, não insistam nessa merda de argumento, vocês deveriam ter aprendido isso na escola!

    A ideia de que a exploração dos portugueses e outros colonizadores no Brasil não foi tão grande quanto se imagina e de que beneficiou os povos indígenas é um dos tantos absurdos que se tornaram o tipo de best-seller caça níquel que agrada a pessoas que eu realmente considero, ou muito ignorantes ou muito mal-intencionadas.  



    Eu nem vou entrar nesse mérito, mas acreditar que a colonização portuguesa foi benéfica para os diversos povos que já viviam aqui e foram praticamente exterminados e expulsos de suas terras é tão imbecil quanto achar que a escravidão tribal e por guerras que ocorria no continente africano e entre povos islâmicos é equivalente a escravidão mercantilizada das potências europeias e americanas, vocês fumaram bosta de cavalo, só pode.
 
    A verdade é que o sucesso desse tipo de burrice propagada com tons de informação privilegiada e rápida, sem qualquer aprofundamento e complexidade não me surpreende. Sob o pretexto de se "ouvir todos os lados e todos os especialistas possíveis", ideias assim se tornam passíveis de crédito por uma massa de pessoas que muito provavelmente só queriam confirmar suas próprias teses pessoais. O vira-latismo brasileiro tem muito a ver com isso:

"Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima."

Nelson Rodrigues.

    Caberia questionar a real necessidade de uma identidade nacional uniforme, ou se ela sequer é possível em qualquer país existente, mas acredito que o modo como tratamos nossa história se reflete no modo como tratamos histórias tipicamente brasileiras. É verdade que a televisão mostra com o sucesso das novelas como a tradição oral de contação de histórias é muito mais forte na nossa cultura, mas percebe-se que mesmo com o crescimento de leitores, as obras nacionais continuam sendo minoria. Num mercado recheado de títulos estrangeiros, um dos poucos momentos em que a literatura brasileira é consumida pelo público acaba sendo como matéria empurrada para os vestibulares. E pela literatura ser um meio ainda muito elitizado, os escritores e escritoras não-brancos acabam sendo minoria, isso quando chegam a ser conhecidos, como foi o caso da própria Conceição:

"Em todas as áreas, os poucos negros que conseguem uma ascensão social são vistos como histórias de exceção. Mas as histórias de exceção devem ser lidas para se pensar a regra.
Que regras são essas da sociedade brasileira para vermos uma mulher virar um expoente no campo da literatura só aos 71 anos?"


"Ah, mas e quanto ao Machado de Assis? E o Lima Barreto?"

Machado de Assis fotografado por Marc Ferrez, 1890.

    De novo, exceções. E ainda assim, o apagamento que escritores como Lima Barreto sofriam até pouco tempo atrás e a vez em que Machado de Assis foi retratado como um homem branco numa propaganda da Caixa, sendo que ele era mestiço, só confirmam o quanto infelizmente esses escritores sempre tiveram muito mais dificuldade de serem inseridos e reverenciados no meio literário. E para escritoras não-brancas, somam-se ainda as dificuldades encontradas por serem mulheres, como a falta de equidade salarial, tempo livre consumido com jornadas de trabalho duplas ou triplas, estigmas e opressão religiosa ou política em certas comunidades e países... enfim.

"O discurso da meritocracia e os exemplos de pessoas negras que acabam se constituindo em uma exceção são perigosos. Porque cria-se esse imaginário de que, se a pessoa estudar, trabalhar, se esforçar, ela consegue. Isso é mentira. Conheço várias pessoas que estudaram, trabalharam, lutaram e não conseguiram. Ficaram pelo caminho. Esse discurso passa a impressão de que as pessoas que não conseguem são preguiçosas. Não é isso. É um esforço sobre-humano.
E, sem sombra de dúvida, eu queria ter conseguido as coisas com muito mais facilidade. Volto a falar: Eu tenho 71 anos. 71 anos não são 71 dias. É claro que estou feliz com o reconhecimento, mas essas conquistas se dão depois de muito tempo de luta. Podia ter sido um pouquinho mais fácil."

    Sim, Conceição, também acho.

    Em todos os contos, a autora explora as diversas vivências e existências cotidianas sob a lente de quem sentiu e viu mais de perto essas chagas sociais. Sem tirar o mérito da escritora em dar forma a esses sentimentos e ideias, mas são casos em que a pessoa do autor influência no resultado final.

"Não é que o homem não possa escrever sobre a mulher. Pode. Não é que o branco não possa escrever sobre o negro. Pode.
Mas quando esse discurso falado ou escrito carrega a nossa subjetividade, justamente porque ele nasce num lugar social, num lugar de gênero, num lugar racial diferente, ele traz determinadas peculiaridades que aquele que escreve de fora, por mais que seja competente do ponto de vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Ele não traz uma carga de quem escreve de dentro.
Aqui não tem nenhum juízo de valor, de querer dizer qual texto é mais bonito. Não é isso não. Mas trata-se de apontar esse local diferente onde esse discurso nasce e é desenvolvido." Conceição Evaristo à BBC.

    Continuando a análise, vamos dar uma olhada em como a autora traz esse olhar diferenciado para seus contos.

As vivências de mulheres e homens negros e o lugar de fala


    Além de "Olhos d'água", os demais contos também refletem sobre a ancestralidade e outros temas com o enfoque nas vivências femininas negras, mas são bem menos "leves". Em "Maria", uma empregada deseja apenas voltar pra casa e oferecer um melão para os filhos que nunca provaram a fruta. Na viagem de ônibus, porém, ela reencontra o pai de um dos meninos que assalta os passageiros e por não tê-la assaltado, desperta a suspeita e a ira deles contra ela. O conto é forte como uma pancada no estômago e mostra a mentalidade de "cidadão de bem" do brasileiro médio nessas situações. Basta ver os casos de linchamentos que vez ou outra acontecem. Infelizmente, o nosso povo cordial é um dos que mais mata sem dar chance de defesa, como se um ato violento pudesse trazer justiça e se esquecendo de que é sempre mais fácil descontar em quem é mais fraco.

    "Ana Davenga" é a história de amor conturbada da mulher por Davenga, um assaltante, onde ela reflete sobre as escolhas de vida do marido. Ao fim, eles acabam encurralados pela polícia enquanto dormiam e executados friamente em seu barraco, estando Ana grávida. E tudo provavelmente registrado como "auto de resistência", eu imagino.

    "Duzu-Quereça" traz a personagem de uma mendiga relembrando sua chegada a cidade e os traumas que a marcaram com sua exploração e prostituição infantil. É um conto pesado, mas tem seus momentos de leveza quando ela olha para o presente e para o futuro, representado por seus três netos.

    "Beijo na face" fala sobre a violência doméstica sofrida por Salinda, uma mulher cujo marido ciumento a persegue com ameaças de morte e de tomar-lhe os filhos, até a inevitável separação e descoberta do novo amor dela:

"Além da ida ao trabalho, Salinda não podia sair só. Os filhos, sem saber, tinham sido transformados em vigias da mãe. A viagem de regresso, que ela fez sozinha, foi controlada desde o momento em que deixou a casa da tia. No princípio, logo que começou a ser vigiada, chegou a pensar que estivesse sofrendo de mania de perseguição. Confirmou, porém, que estava sendo seguida, quando, numa noite, o marido, julgando que ela estivesse dormindo, falava alto na sala ao lado, e sem querer ela ouviu todo o teor da conversa. Ele pedia notícias de todos os passos dela."

    Em "Luamanda", uma mulher de meia-idade relembra seus amores e descobertas sexuais da juventude, e suas tentativas de se recuperar do trauma de uma violência sexual:

"Foi um tempo em que precisou exercitar a paciência com o seu próprio corpo. Trancada em si, ou melhor, aberta para si mesma, com as mãos espalmadas e leves imaginava lenitivos carinhos. Chorando alisava, bulia, contornava uma cicatriz que ficara desenhada em um ponto da pele, onde os pelos se rarearam para sempre. Era um ponto único, minúsculo, um impertinente calombo. Ali, então alisava a dor e seus contornos."

    Algo que é importante destacar nesse e em alguns dos outros contos, é que apesar de retratarem experiências sexuais e amorosas, em nenhum momento ocorre a objetificação da mulher negra. Esse é um dos vários estereótipos racistas que aparecem retratados em obras de ficção. Objetificação e hipersexualização da mulher, sobretudo da negra, pode ser definida nas seguintes formas:

"Segundo BELMIRO et al (2015):
“A objetificação, termo cunhado no início dos anos 70, consiste em analisar um indivíduo a nível de objeto, sem considerar seu emocional ou psicológico.”"

"Nas raras ocasiões em que a sociedade expressa algum desejo por mulheres negras, é quase sempre pela ideia de que a mulher negra é um “sabor diferente” e “mais apimentado” de mulher. O corpo feminino negro é hipersexualizado, considerado exótico e pecaminoso. Quem nunca ouviu falar que a mulher negra tem a “cor do pecado”? Essa é a brecha que sobrou para que o racismo continue a ser imposto às mulheres negras: a dicotomia do gostoso, exótico e diferente, mas que ao mesmo tempo é proibido, impensável, pecaminoso e não serve para o matrimônio ou monogamia." (fonte)


    Muito diferente disso, o que a autora faz é mostrar o sexo apenas como uma das várias facetas dessas personagens, nunca tornando-o algo que está ali apenas para o deleite do leitor, mas sim apresentando esse aspecto como um dos muitos outros da narrativa.

    Já em "Lumbiá", "Di Lixão", "Ei, Ardoca", "Os amores de Kimbá", "A gente combinamos de não morrer" e "Zaíta esqueceu de recolher os brinquedos", são contos que falam dos menores abandonados na rua e da juventude sem perspectivas, vagando pelos lixões e linhas de trem, ou morando nos morros, sujeitos aos maus-tratos domésticos e ao medo e desprezo dos transeuntes. Balas perdidas, fome, suicídio são alguns dos trágicos destinos que se desvelam nessas histórias. "Os amores de Kimbá" tem mais alguns temas além desses, como a bissexualidade do protagonista, que fica subentendida. Por mais que eu não tenha gostado do final, acho que pode ser interpretado como o que eu descrevi acima.

    O conto mais leve é "O cooper de Cida", que fala sobre a rotina agitada de uma mulher cuja agenda cheia de compromissos a impede de apreciar as belezas da praia onde ela pratica caminhada, até o dia em que ela se rebela contra sua própria pressa:

"Aos dezessete anos, um emprego, o primeiro, arranjado por um tio, permitiu que ela viesse para a capital. A vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações. A noite festejada por encontros de rápidos gozos. Os amores tinham de ser breves. Cursos, estudos, somente aqueles que proporcionassem efeitos imediatos. Nada de sala de aula durante anos e anos e de leituras infinitas. — Aprenda inglês em seis meses. Garantimos a sua aprendizagem em cento e oitenta dias. — Nada de gastar o tempo curto e raro. É preciso correr, para chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no banco, encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa. O padre era lento e o ritual também. Assistia à metade da liturgia, pelo menos não ficava com o remorso inteiro. Não perder a missa aos domingos foi a única recomendação que a mãe fizera."

    Todos esses contos são bons, mas um dos que eu gostaria de falar particularmente é "Quantos filhos Natalina teve?". Esse conto trata do controle exercido sobre a sexualidade e a concepção da protagonista. Natalina, cujo nome não poderia ser mais literal, tem pouco ou quase nenhum controle sobre seu próprio corpo, fazendo uso de chás abortivos para "se prevenir" e quando isso não funciona, ela doa os filhos nascidos para outras pessoas, deixando com o pai, e em outra ocasião, servindo de barriga de aluguel para seus próprios patrões:

"Ela e o marido já haviam conversado. Era só a empregada fazer um filho para o patrão. Elas se pareciam um pouco. Natalina só tinha um tom de pele mais negro. Um filho do marido com Natalina poderia passar como sendo seu."



    Assim, Natalina, que na maior parte do conto não deseja ser mãe, se vê sempre presa ao dilema de repetir o destino de sua própria mãe e criar muitos filhos sem ter condições, ou se submeter a um aborto clandestino altamente arriscado:


"O que fazer quando o filho da menina nascesse? Na casa já havia tanta gente! Ela, o marido e sete crianças. E agora teria o filho da filha? Ia tentar mais um pouco de beberagens, se não desse certo, levaria a menina a Sá Praxedes."
 



    A parteira Sá Praxedes, de quem se falava no morro que "comia os bebês", é outra figura a exercer ameaça sobre Natalina. A referência ao aborto clandestino é óbvia, e o medo de se ver submetida a esse procedimento sem qualquer assistência médica faz a protagonista fugir de casa, tendo o bebê em um hospital e deixando-o com a enfermeira e partindo. Ao longo do conto, essa situação se repete, e mesmo exercendo seu direito de escolher não ser mãe, fica muito claro que se Natalina tivesse acesso a método anticoncepcionais e a conhecimento sobre seu próprio corpo e sexualidade, muito provavelmente ela não teria passado por tantas gravidezes indesejadas. A barriga que Natalina acaba por aceitar e acolher, paradoxalmente, é a gravidez gerada por um estupro no qual ela mata seu agressor num descuido dele:


"O movimento foi rápido. O tiro foi certeiro e tão próximo que Natalina pensou estar se matando também. Fugiu. Guardou tudo só pra ela. A quem dizer? O que fazer? Só que guardou mais do que o ódio, a vergonha, o pavor, a dor de ter sido violentada. Guardou mais do que a coragem da vingança e da defesa. Guardou mais do que a satisfação de ter conseguido retomar a própria vida. Guardou a semente invasora daquele homem. Poucos meses depois, Natalina se descobria grávida. Estava feliz. O filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora.

Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. Estava feliz e só consigo mesma. Lembrava de Sá Praxedes e sorria. Aquela criança Sá Praxedes não ia conseguir comer nunca. Um dia, quando era quase menina ainda, saíra da cidade onde nascera fugindo da velha parteira. Agora, bem recentemente, saíra de outra cidade fugindo do comparsa de um homem que ela havia matado. Sabia que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte."


    Muitas leituras equivocadas poderiam ser feitas desse final, mas o que eu interpreto é que, ao conseguir atirar em seu estuprador e fugir, salvando a si mesma, Natalina toma para si o filho gerado desse trauma, ressignificando um evento altamente doloroso. Foi uma luta de vida ou morte da qual ela sai vitoriosa. O filho gerado só estava ali, por ela se achar também, viva. Dessa forma, através da valorização de sua própria sobrevivência, ela pode também valorizar o filho e querê-lo. É interessante notar que, essa gestação para Natalina não é como algo gerado através de uma relação entre ela e um companheiro com expectativas e questões em jogo, nem um bebê gerado para outrem, mas sim como um ser separado de si própria:  "Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela."


    O filho aparece, talvez, como um ser sem conexões com a dura realidade de Natalina. Quase como um presente espiritual, um prêmio por sua coragem.


 

    Enfim, é um conto difícil de se interpretar sem cair no maniqueísmo de julgar a mulher que aborta como culpada por sua própria situação, como se todos os anticoncepcionais não tivessem sua remota chance de falharem, ou como se as pessoas fossem infalíveis. Sem contar na ideia de que a mulher escolheu fazer sexo, logo ela tem que arcar com as consequências... Claro, porque não é você quem vai passar nove meses grávido, e ainda correndo o risco de morrer por complicações da própria gestação. Incrível essa mentalidade punitivista que geralmente é propagada por homens e pelas mesmas pessoas que acham que toda criança é uma bênção. Uma criança pode ser sim, uma bênção, quando desejada. Receber uma coisa muito boa quando não se quer aquilo pode sim, ser um castigo.


O aborto, o Estado e a liberdade nas relações sociais, étnicas e de classe


    Antes de continuar nesse tópico final, quero acrescentar que eu entendo o lado de algumas das pessoas que se posicionam contra o aborto por temor de ferir o que deve estar em primeiro lugar, que é a vida de um ser humano. Eu acho que praticamente ninguém é contra isso. Mas considerar a mulher um mero "recipiente" para a geração de vida e achar que a única escolha válida nessa situação é a de gerar o filho apesar de todo o trauma e dor associados, pra mim é uma maldade sem tamanho.
Sim, por que depois de nascida, todos os defensores "Pró-vida" desaparecem, e a criança que nunca foi desejada tem grandes chances de crescer sem amor, abandonada ou relegada a um abrigo ou sendo desprezada e temida como um menor de rua por esses mesmos conservadores. Até 12 semanas, merece toda a proteção e amor do mundo, depois, tem mais é que prender ou matar mesmo, porque tem menos de 16 anos, mas sabia muito bem o que estava fazendo... sei.



    A mulher que aborta não é um ser repleto de maldade e que "não tem amor nem Deus no coração". Na maioria das vezes, são apenas pessoas comuns, que não se encontravam em condições para lidar com a grande mudança de vida que é gerar outro ser. E ser a favor da escolha não é o mesmo que ser a favor do ato em si. Ser a favor da legalização do aborto até a 12ª semana de vida é defender o direito de uma mulher escolher o que é melhor para sua si mesma e principalmente, não fere o princípio da proteção da vida, pois até essa etapa, o feto não é consciente nem sente dor. É um punhado de células ainda em desenvolvimento, da mesma forma que uma semente tem o potencial de ser uma árvore um dia, mas não o é até que tenha condições suficientes para isso.

    Além disso, legalizar o aborto na rede pública protegeria a vida e o direito das mulheres que não podem pagar uma clínica de alta qualidade como o pessoal da capa da Veja fez. Por que o aborto já acontece, independente da lei e das condições, e muitas vezes o resultado é a morte ou sequelas na própria paciente.


    Independente da escolha frente a uma gravidez indesejada, todas as mulheres que passam por essa situação precisam receber assistência e cuidados, respeito. O que elas não precisam é de um projeto de lei que relativiza o dano psicológico, físico e mental da vítima propondo que o agressor lhe pague a módica quantia de 85 reais mensais, às mulheres que decidirem seguir em frente com a gravidez. O projeto ainda previa que o próprio estuprador pagasse a quantia, sem considerar a série de constrangimentos e situações que poderiam surgir daí.



    A falta de políticas de educação sexual, muito combatida por representantes conservadores desde sempre, está por trás do panorama trágico em que milhares de mulheres que morrem no Brasil por lhe serem negadas informações e acesso a métodos contraceptivos e acesso ao aborto até a 12ª semana de gestação. Ao contrário do que se imagina, o aborto feito até essa fase com cuidados médicos, não apresenta tantos riscos. (fonte) Mas o abortamento inseguro, feito em condições precárias, sim: 

"O abortamento inseguro provoca 602 internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade e 9% dos óbitos maternos, sendo a terceira causa de mortes maternas no Brasil. Acontece cerca de uma morte a cada 11 minutos por abortamento inseguro. No mundo são realizados cerca de cinco milhões de abortos ao ano, sendo 97% em países onde o aborto é ilegal. Se consideradas as negras e pardas juntas, elas realizam cerca de três vezes mais abortos que as mulheres brancas, morrem ou sofrem sequelas três vezes mais também." (fonte)

Janaína Aparecida Quirino, esterilizada sem consentimento dela.

    A justiça não dá à mulher, principalmente a negra e a parda, o controle de sua natalidade, mas quando lhe é conveniente, executa de forma autoritária esse mesmo controle a seu bel-prazer, sem considerar a vontade da pessoa. Não são poucos os casos de mulheres pobres vítimas de esterilização compulsória:

"[...] não é por acidente que a esterilização compulsória foi realizada em uma mulher pobre e em situação de extrema vulnerabilidade. O mesmo grupo que morre dia sim dia não por conta de abortos clandestinos realizados sem qualquer condição de higiene ou pessoal especializado. São as negras e pobres as principais vítimas da misoginia enraizada no Brasil, no desejo supremo de controlar as mulheres a qualquer custo. Seja para ter filhos (proibindo o aborto), seja para não ter (com a laqueadura sob ordem judicial). Quem é o Estado para determinar quantos filhos uma mulher vai ter, à revelia de sua vontade?" (Nana Soares, jornalista)


    Para as mulheres pobres, a maioria delas negras, o governo escolhe até mesmo como a mulher será ou não mãe, e a maior prova disso é o modo como as mães detentas são tratadas, podendo ficar com os filhos no máximo até os seis meses de idade:

"Os partos são realizados em hospitais públicos da cidade. No estado de São Paulo, como previsto por lei, as prisioneiras que dão à luz não ficam mais algemadas. O parto, porém, não pode ser acompanhado pelo marido ou por outro familiar, somente por uma agente carcerária.

Em todo o estado, são oito unidades materno infantis. 130 gestantes e 83 mulheres que acabaram de ser mães estão nestes locais. E, embora não sejam obrigadas, é na cela de oito metros quadrados que elas passam a maior parte do tempo. A mãe dorme numa cama de concreto com um colchão. Pro bebê, um berço da própria penitenciária.

Além disso, tem pia e um chuveiro, mas água quente para o banho tem hora marcada. Na cela de número 12, está Andressa, presa por tráfico. Ele se tornou mãe há dois meses, mas não esconde a tristeza com o futuro do filho. O pai da criança está preso e só soube do nascimento porque os dois trocam cartas. É o único contato com alguém de fora da cadeia que Andressa tem."



"Em 05/08, Drauzio Varella voltou ao tema em sua coluna na Folha. Abordando a “Desigualdade judiciária” nacional, destacou a concessão de prisão domiciliar para a mulher do ex-governador Sérgio Cabral. Adriana Ancelmo obteve o direito porque tem dois filhos. Na cadeia, permanecem milhares de mulheres. Quase todas são mães, avós, bisavós. Praticamente todas, pretas e pobres.

Diante disso, Varella pergunta:

Como explicar que elas não têm direito à lei da qual se valeu essa senhora, cujo marido roubou muitos milhões a mais do que a somatória de todos os furtos e assaltos praticados pelas 2.200 prisioneiras da cadeia?"  (fonte)


    Tudo isso faz parte de um contexto muito real e muito triste do qual as pessoas se esquecem muito facilmente. Eu queria discorrer sobre o encarceramento que afeta sobretudo pessoas negras e pobres e todos os temas adjacentes a esse, mas acho que o artigo já está longo demais, então resolvi dividi-lo em duas partes e deixar pra falarmos disso mais pra frente, junto com a resenha de O sol na cabeça.



    O último conto, "Ayoluwa, a alegria de nosso povo", encerra com uma nota particularmente bonita, que eu acredito era a intenção da autora de amarrar as pontas com algo que sinalizasse uma mensagem de esperança por um mundo melhor, ao mesmo tempo em que encara a realidade dura do presente, que é a tônica geral desse livro:

"Não digo que esse mundo desconsertado já se consertou. Mas Ayoluwa, alegria de nosso povo, e sua mãe, Bamidele, a esperança, continuam fermentando o pão nosso de cada dia. E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução."


    Também tem essa entrevista com a Conceição Evaristo, muito bacana por sinal. E recomendo muito o canal "Papo de Preta", muito obrigada pelo ótimo vídeo e ao Txai Zerbeto pela ajuda com a pesquisa!


Nos vemos na parte dois.