Aumentar ou Diminuir a fonte

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Resenha: O Poderoso Chefão

 

 



Ficha técnica

Editora Record, 39ª edição, 2018

Título original: The Godfather 

Autor: Mario Puzo 

Tradução: Carlos Nayfeld

Capa: Túlio Cerquize



Olá, meus álbuns novos da Katy Perry! Como vão?


Vou confessar que eu tenho deixado de lado as resenhas por que, além de me darem muito trabalho, eu não tenho lido tantos livros novos nessa pandemia quanto poderia. Uma coisa que a quarentena trouxe para muita gente é essa vontade de nos refugiarmos em coisas que já conhecemos frente a tempos tão incertos. Mas enfim, eu tinha esse livro em casa e não tinha terminado de ler por pura preguiça, então resolvi dar uma chance. Depois de séculos sem lançar uma nova resenha, volto agora com O Poderoso Chefão, de Mario Puzo.




Mario Gianluigi Puzo nasceu em Nova York (1920- 1999), e antes de sua obra-prima, escreveu para revistas e outros livros. Filho de imigrantes italianos, ele cresceu no Hell's Kitchen, um dos bairros mais barra-pesada da cidade na época. Ele serviu na força aérea americana durante a Segunda Guerra e após isso, frequentou cursos de literatura e escrita. À princípio, sua família era contra sua vontade de ser escritor, e aos 46 anos, já com cinco filhos, ele percebeu que precisava focar num retorno financeiro, já que seus livros não tinham sido sucesso em vendas.  Após um de seus editores sugerir que ele deveria se focar mais nos aspectos sobre o crime organizado que já existiam em seus livros anteriores. Foi assim que Puzo enfiou o nariz numa pesquisa sobre o assunto e foi tão fundo que o fez ser questionado se ele tinha ligações com a máfia, e os próprios mafiosos ficaram cabreiros com isso. Independente disso, o resultado foi icônico e deu origem à imagem que temos de um todo um gênero literário e do cinema e tv.




Falando sobre cinema, minha segunda confissão é que eu não assisti toda a trilogia dos filmes do Francis Coppola. 


"Eu sei, Freddo. Você partiu meu coração."


Só me lembro de ter visto o primeiro quando eu era pré-adolescente: eu era tipo a colunista cinéfila da família e sempre me interessava em pedir pra alugar um vídeo ou dvd na locadora depois de ler algumas resenhas pela internet. Acho que logo depois que começaram os tiros e estrangulamentos no filme, meu pai começou a ficar um pouco preocupado com o que eu lia por aí. Mesmo assim, eu lembro de ter achado interessante no começo, mas depois apenas chato... Acho que é por que eu era UMA PRÉ-ADOLESCENTE e não um desses caras que curtem endeusar gângsters e citar frases de filmes como se isso fosse o suprassumo da sétima arte e a pura definição de masculinidade.



Enfim, quem sou eu para julgar o Michael Kyle. Acho que em termos de culto, o Poderoso Chefão é o equivalente a um Meninas Malvadas: ambos são filmes que refletem sobre o poder e as relações que o constroem através de hierarquias sociais em contextos bem específicos e para públicos quase diametralmente opostos. Em Meninas Malvadas, o paradigma vítima/agressor é mostrado como um ciclo interminável de bullying e intimidação, assim como em... O Poderoso Chefão.



Do mesmo modo que Cady sucumbe à tentação da popularidade a qualquer custo e se torna o que ela mesma desprezava, Michael Corleone assume os negócios criminosos do pai apesar de inicialmente repudiá-los. A única diferença é que enquanto o arco dramático de Cady acaba com ela renunciando a seu lado mais sombrio em prol das amizades verdadeiras e do entendimento de que a coroa da rainha do baile é só um título e que o poder verdadeiro pertence ao povo, Michael Corleone abraça sua própria sombra, ocupando o lugar que era de seu pai como novo chefe da máfia e da Famiglia, mesmo isso quase custando sua própria família que construiu com sua segunda esposa, Kay. E não, eu não tenho planos de parar de usar comparações e referências a esse filme, então é melhor abandonarem essa resenha agora se você se ofende com isso.




O engraçado é que a cultura introjetou o Poderoso Chefão como O filme da máfia, mas o livro tem muitos outros aspectos também interessantes que vão além dos memes motivacionais com frases icônicas sobre família e masculinidade. Existe uma relação que o autor faz entre a ascensão das máfias nas sociedades com uma espécie de revolta contra o sistema formalmente instituído. Mas antes de sair  por aí carimbando o livro como um ode cravado de balas à anarquia, é preciso lembrar que "anarquia" no termo popular e do senso comum não tem nada a ver com o anarquismo (ou pelo menos, muito pouco a ver). 



O anarquismo enquanto doutrina política se opõe a toda forma de dominação e hierarquia, tendo por símbolo máximo a luta contra o Estado, o capitalismo e outras formas de opressão. Apesar do termo ter o sentido pejorativo de algo caótico, violento e sem sentido, o anarquismo propõe a superação das dominações e sua substituição por coisas mais construtivas, como autogestão, cooperação e ajuda mútua. É algo bem interessante que eu acabei de ler na Wikipedia  tive contato com fontes anteriores, mas eu não sei muito a fundo, então ainda lerei mais a respeito no meu tempo livre. Enfim, apesar de todas as críticas presentes no livro às injustiças e hipocrisias do sistema, Don Corleone e seus asseclas estão mais para perpetradores da anomia do que para insurgentes anarquistas, mas eu ainda vou comentar mais sobre.

"Ah, mas os piratas de One Piece ainda são antifascistas, né?"

Acho apropriado falar desse livro agora que o Poderoso Chefão parte III terá um remake do Coppola. Eu não tenho uma opinião sobre o filme além do primeiro que eu assisti e do que eu li sobre os demais. Ao que parece o terceiro é uma tremenda batida de trem e os outros dois competem pela posição de destaque, sendo o primeiro um marco no cinema do gênero. 


Mas se você for desses que não sabem necas de pitibiriba (gíria velhas, amo) sobre os filmes, aqui vai um resumo:

Era uma vez, uma família muito unida e também muito ouriçada, que também era uma Família da Máfia:

Opa, imagem errada...

Ah, agora sim. A família Corleone



Vito Corleone é o Don, o chefão, padrinho e mandachuva de um negócio de azeite. Aparentemente, é um negócio tão bom e lucrativo que se torna mortal para a concorrência e ele tem o suficiente para fechar uma rua em Long Beach e morar em lindas casas de condomínio com a esposa e os quatro filhos: Sonny, Fredo, Michael e a fraquejada Connie . Claro que manter um império como esse não é de graça e para isso ele conta com a confiança e o trabalho de seus valorosos capangas homens: o consigliere Tom Hagen, os caporegimes Clemenza e Tessio e seu subordinado, Paulie Gatto. Ainda temos Luca Brasi, mas ele é um assassino pessoal de Don Corleone, então ele só o usa em casos realmente "especiais".




Além de lucrar com importação de azeite e jogos ilegais, o padrinho também resolve os problemas da comunidade de imigrantes italianos de Nova York, sejam esses problemas algo como mandar para o hospital os agressores da sua filha, arranjar um noivo para sua filha ou conseguir um papel num filme e voltar a ver suas filhas. Céus, tem algo estranho nessa repetição, ou só eu que percebi?

Enfim, como tudo na vida tem um preço, é bom estar preparado para quando o padrinho lhe pedir o favor de volta, conforme diz o diálogo entre Michael e sua namorada:

"— Você tem certeza — falou Kay refletindo — de que não está com ciúme de seu pai? Tudo o que você me contou sobre ele mostra-o fazendo algo por outras pessoas. Ele deve ter um bom coração. — Ela deu um sorriso amarelo. Na realidade, os seus métodos não são exatamente constitucionais. 

Michael deu um suspiro. — Acho que a coisa parece assim, mas deixe-me dizer-lhe isso. Você já ouviu falar naqueles exploradores árticos que deixam depósitos secretos de comida espalhados na rota do Pólo Norte? Justamente para o caso de que possam necessitar deles algum dia? Isso é o que representam os favores do meu pai. Algum dia ele estará em cada uma das casas dessas pessoas e será melhor que elas venham ao encontro dele."




O casamento da filha do Don acaba sendo a oportunidade perfeita para fazer pedidos ao chefão, visto que ele não pode recusar nenhum pedido por uma questão de tradição. Dentre outros, Corleone promete ajudar o afilhado e cantor Johnny Fontane a conseguir um papel em um filme que promete ser um sucesso, mas que está sendo barrado para ele pelo produtor Jack Woltz, um velhaco que vive de aliciar atrizes jovens e que está se vingando dele por Johnny ter saído com uma de "suas garotas". Don Corleone manda o afilhado descansar e destaca Tom Hagen para resolver o caso e promete "fazer uma oferta que ele não poderá recusar". 


Esse travesseiro entrou agora para minha lista de desejos


Enquanto isso, Virgil Sollozzo, mafioso conhecido como "turco" no ramo dos entorpecentes, recebe a recusa de Don Corleone em participar de seus "negócios". Aparentemente, ele também não é bom em aceitar recusas e manda dois capangas para encher o padrinho de balaços quando ele e Freddo param numa quitanda para comprar laranjas.




Uma coisa interessante dos filmes é a relação entre as laranjas e algum atentado ou assassinato de um personagem. Como eu estou mais focada em falar do livro, não vou me aprofundar no assunto, mas quem estiver curioso pode ler esse texto que encontrei aqui. Sei que no filme as laranjas não possuem outro significado além desse, mas acho curiosa a escolha e o tipo de relação semiótica que isso poderia ter num contexto tupiniquim. 




Já imaginou, se o Poderoso Chefão fosse um filme brasileiro, seria como um Tropa de Elite 2, principalmente, com todo mundo entendendo errado a mensagem e glamurizando o Bope como foi na época. E as laranjas seriam um símbolo tão escrachado para a corrupção que tudo terminaria parecendo aqueles atos do Psol contra o atual governo, mas isso já é muita viagem... Onde é que eu estava mesmo?

Ah, o livro... Então, falando sobre a cena do atentado no livro, uma coisa a se notar é que ela não ocorre linearmente como no filme. No livro, Michael e Kay se deparam com a notícia no saguão do hotel onde haviam se hospedado para passarem a noite juntos, e levam um susto junto com o leitor ao ler a manchete no jornal: 


"Kay olhou para ele, com os olhos cheios de água. — Oh, Mike! — exclamou ela. — Oh, Mike! Michael tirou o jornal das mãos dela. A primeira coisa que viu foi uma fotografia do pai caído na rua, com a cabeça numa poça de sangue. Um homem estava sentado no meio-fio chorando como uma criança. Era seu irmão Freddie. 

Michael Corleone sentiu o corpo ficar gelado. Não havia pesar, nem medo, apenas raiva fria. Ele disse para Kay: — Suba para o quarto. 

Mas teve de tomá-la pelo braço e conduzi-la para o elevador. Subiram em silêncio. Ao chegarem ao quarto, Michael sentou-se na cama e abriu o jornal. As manchetes diziam: VITO CORLEONE BALEADO. SUPOSTO CHEFE DE EXTORSIONÁRIOS GRAVEMENTE FERIDO. OPERADO SOB FORTE PROTEÇÃO POLICIAL. TEME-SE SANGRENTA GUERRA DE QUADRILHAS. 

Michael sentiu fraqueza nas pernas. Disse para Kay: — Ele não está morto, os canalhas não o mataram. Leu a notícia novamente. Seu pai tinha sido baleado às cinco horas da tarde. Isso significava que, enquanto ele estava fazendo amor com Kay, jantando, deleitando-se no teatro, o seu pai estava à morte. Michael começou a sentir-se pesarosamente culpado." 

E só então, vem a parte onde é descrita a cena como ocorreu. Uma ótima escolha como gancho para prender a atenção do leitor, mas que foi mudada no filme, provavelmente para melhor compreensão.





Enfim, após o atentado contra Don Coronelone, toda a Famiglia se mobiliza e Michael, até então praticamente um forasteiro dos negócios do pai e que sempre preferiu se manter distante dele, é tragado pelos acontecimentos e se vê cada vez mais envolvido na medida em que a vida do velho depende de seus esforços para protegê-lo de seus algozes. 

"O que Michael desejava estava fora, fora de tudo isso, era dirigir a sua própria vida. Mas não podia libertar-se totalmente da família, enquanto a crise não terminasse."

A guerra entre as famílias é declarada e escala conforme eles percebem que Paulie Gatto se vendeu para Sollozzo e traiu os Corleone. Gatto é eliminado por Clemenza (que infelizmente não fala a famosa frase sobre cannolli), e enquanto tenta proteger o pai de ser finalizado pelos inimigos no hospital, Michael apanha do capitão Mc Cluskey, um policial corrupto que "está na gaveta" de Sollozzo, e todos se perguntam onde está Luca Brasi.

E onde estava Luca Brasi?


"Não é da conta de ninguém com quem ele dorme." diz a militante no Twitter.
Ela estava certa e errada.

Após o assassinato de Luca pelos Tattaglia, Mike, Sonny, Tom e Clemenza discutem os planos e o próprio Michael se oferece para a tarefa de liquidar Sollozzo. Sonny não poderia ser por ele ser temperamental demais e já estar envolvido na cosa nostra, Freddo também não pelo mesmo motivo e por também ter ficado abalado com o ataque, só restando isso, ou correr o risco do homem fazer uma nova tentativa de matar o Don. E aparentemente Mike é mesmo o homem certo para isso, visto que apesar dele ter servido no exército,  o mafioso não desconfia de que eles pretendem envolver um "civil" de fora da máfia na guerra entre as famílias e aceita de se encontrarem para renegociar sua proposta. 

"— Você liquidará os dois? — perguntou Sonny. — Olhe aqui, garoto, eles não lhe darão medalhas por isso, eles o levarão à cadeira elétrica. Você sabe disso? Isso não é trabalho para heróis, garoto, você não vai atirar em gente a quase dois quilômetros de distância. Você vai atirar quando vir o branco dos olhos deles, como nos ensinaram na escola, lembra-se? Você vai ter que ficar bem pertinho deles e estourar-lhes a cabeça e ver os miolos escorrer pela sua roupa limpinha de bom-moço. Que é que tem a dizer, garoto, você quer fazer isso só porque um policial estúpido lhe bateu? Sonny ainda estava rindo.

 Michael levantou-se. — É melhor você parar de rir — falou. 

A transformação que Michael sofreu foi tão extraordinária que os sorrisos desapareceram dos rostos de Clemenza e Tessio. Michael não era alto nem de constituição robusta, mas a sua presença parecia irradiar perigo. Nesse momento, ele era a reencarnação do próprio Don Corleone. Seus olhos adquiriram um tom castanho-pálido e seu rosto estava completamente branco. Parecia disposto a atirar-se a qualquer momento sobre o irmão mais velho e mais forte. Não havia dúvida de que se ele tivesse uma arma na mão, Sonny correria perigo; Sonny parou de rir, e Michael perguntou-lhe numa voz extremamente fria: — Você pensa que não sou capaz de fazê-lo, seu sacana?"



Uma outra coisa a ser dita sobre o filho mais novo dos Corleone é que no livro ele é um protagonista muito mais proativo e menos ingênuo do que alguém poderia supor pelo arco de personagem dele ao longo da história: ele praticamente bola toda a enrascada para matar Sollozzo sozinho, além de ter sido o primeiro a chegar no hospital e constatar que Mc Cluskey havia prendido os homens que guardavam seu pai, tudo a mando do turco. Após remediar a situação, ele recebe em silêncio o soco do policial corrupto, soco esse que lhe rende um ferimento e diversas sequelas como dor de cabeça e o nariz escorrendo. Mas ele aguenta firme, porque sabe que não adiantaria revidar e correr o risco de ser preso, ainda mais violando o acordo tácito entre os mafiosos que é evitar confusão com a polícia, e também por saber que em breve terá oportunidade de se vingar.

Fazendo isso, porém, Michael também sabe que uma guerra total entre as cinco famílias da máfia de Nova York explodirá e ao fim de tudo, terá de fugir do país deixando Kay para trás. Mas ele não recua, porque no fim das contas, ele é um Corleone e um ataque a eles precisa de uma resposta.


"Entra no carro otário, vamos cometer alguns assassinatos!"


Através de um intermediário, eles combinam de se encontrarem em um pequeno restaurante italiano. Já tendo implantado uma arma escondida na caixa de descarga do banheiro do lugar pelos homens de seu pai, Michael entra desarmado no carro dos mafiosos inimigos. Eles fazem uma rápida manobra para terem certeza de que não estão sendo seguidos e então param no restaurante. Michael, Sollozzo e o capitão Mc Cluskey sentam-se e discutem tudo num clima ameno até que o Al Pacino, já com sangue nos olhos, pede para ir ao banheiro. 

A sequência toda que se segue é de uma tensão que vai escalando cada vez mais desde a entrada de Mike no carro e o desvio do trajeto até a revista deles e a informação de que seus capangas já haviam revistado o banheiro. De tão tenso, Michael chega a usar de verdade a privada (isso tá no livro, não me culpem) e só depois pega a arma e volta a sentar-se no meio deles:



"Sollozzo estava inclinado na direção dele. Michael com a barriga escondida pela mesa, desabotoou o paletó, e ficou ouvindo atentamente, embora não conseguisse entender uma palavra do que o outro dizia. Aquilo era um palavreado oco para ele. Sua mente se achava povoada de sangue martelante, que nenhuma palavra registrava. Por baixo da mesa, sua mão direita moveu-se na direção da arma metida na sua cintura e ele a soltou. 

Nesse momento, o garçom veio saber o que eles queriam para comer, e Sollozzo virou a cabeça para atendê-lo. Michael empurrou a mesa para longe dele com a mão esquerda, enquanto a mão direita impelia a arma quase contra a cabeça de Sollozzo. Sua coordenação era tão perfeita que ele já começara a desviar-se ante o movimento de Michael. Mas este, sendo mais jovem, com os reflexos mais apurados, puxou o gatilho. A bala atingiu Sollozzo em cheio entre o olho e o ouvido, e quando saiu pelo outro lado atirou uma enorme mancha de sangue e fragmentos de crânio no paletó do petrificado garçom. Instintivamente Mike sabia que uma bala era bastante. 

Sollozzo virara a cabeça naquele último momento e Michael vira a luz da vida extinguir-se nos olhos do homem tão claramente como o apagar de uma vela. Um segundo apenas se passara quando Michael girou para apontar a arma na direção de McCluskey. O capitão da polícia olhou para Sollozzo com surpresa fleumática, como se isso nada tivesse a ver com ele. Parecia não ter conhecimento do seu próprio perigo. O seu garfo coberto de vitela estava suspenso em sua mão e seus olhos estavam justamente virando-se para Michael. E a expressão do seu rosto, de seus olhos, denunciava uma afronta tão presunçosa, como se agora ele esperasse que Michael se entregasse ou fugisse, que Michael sorriu para ele quando puxou o gatilho. 

Este tiro pegou mal, não foi mortal. Atingiu McCluskey em sua grossa garganta de touro e ele começou a engasgar-se espalhafatosamente como se tivesse engolido um grande pedaço de vitela. Então o ar como que se encheu de uma fina névoa de sangue vaporizado que ele tossindo expelia dos pulmões arrebentados. Muito friamente, muito calculadamente, Michael disparou o tiro seguinte no alto do crânio coberto de cabelo branco do capitão. O ar parecia estar cheio de névoa cor-de-rosa. Michael virou-se para o homem sentado perto da parede. Ele não fizera sequer um movimento. Parecia paralisado. Agora cautelosamente mostrava estar com as mãos em cima da mesa e olhava para longe. 

O garçom voltava cambaleante para a cozinha, com uma expressão de horror estampada no rosto, olhando fixamente para Michael como se não acreditasse no que vira. Sollozzo estava ainda na cadeira, com um lado do corpo apoiado na mesa. McCluskey, com o corpo pesado puxando para baixo, tinha caído da cadeira no chão.

Michael deixou a arma escapulir de sua mão de forma que ela bateu no seu corpo e não fez barulho. Viu que nem o homem de perto da parede nem o garçom perceberam que ele deixara cair a arma. Deu alguns passos em direção da porta e abriu-a. O carro de Sollozzo estava ainda estacionado no meio-fio, mas não havia sinal do motorista. Michael virou para a esquerda e dobrou a esquina. Faróis se acenderam e um sedan amassado parou perto dele, abrindo rapidamente a porta. Ele saltou para dentro e o carro arrancou para a frente." 



E antes que alguém diga "deixe a arma e pegue o canolli" (frase essa ausente no livro), Michael sai do país com tudo já preparado de antemão por Tom Hagen e foge para a Sicília, deixando sua namorada, Kay Adams, totalmente no escuro quanto ao que ocorreu. Apenas a mãe de Michael toma a liberdade de desrespeitar a ordem do marido e de Tom e aconselha Kay a "esquecer seu filho", insinuando assim que ele realmente se tornou um assassino.





Lá vou eu falar do filme de novo, mas é interessante notar como a película e mais precisamente Anna Hill Johnstone, a figurinista, representou bem através do visual usado por Diane Keaton (também excelente no papel) a transformação pela qual a personagem passa: se no começo do livro ela é uma garota vivaz, franca e de certo modo, com uma visão de mundo bem mais liberal e independente com um emprego como professora, ao fim da história ela se torna quase que o completo oposto: uma mulher sofrida e atormentada pela dúvida, que se submete a uma vida nos bastidores, apartada de tudo o que ocorre atrás das portas onde seu marido, que até então lhe compartilhava tudo sem restrições, se reúne agora secretamente para decidir os destinos de outros e o deles mesmos. Escolhida por Michael como sua segunda esposa após sua volta, Kay lhe dá filhos estadunidenses e lhe proporciona uma certa "americanização" às vistas dos outros, enquanto recebe de volta uma porta na cara e o conselho de nunca se meter nos "negócios da família".


Enfim, a mulher em geral é o elemento estranho em o Poderoso Chefão, um universo que não é nada gentil com elas:

"O vermelho, no entanto, também marca a presença de outras mulheres ligadas aos homens da família Corleone no primeiro filme. Repare como Sandra, esposa de Sonny, já dentro da família, usa uma roupa de cores pálidas enquanto sua amante usa uma roupa com tons de vermelho: o rosa das damas de honra. E é com um vestido vermelho que Michael pela primeira vez vê Apollonia, na Sicília, antes dela se tornar sua esposa. É como se a família, ao absorver as mulheres, absorvesse também sua vida e sua alegria." fonte


Apolônia, primeira esposa de Michael


Mas voltando para o enredo, como eu já estou um pouquinho de saco cheio nessa altura do campeonato, vou resumir da seguinte forma o que acontece a seguir no livro: logo depois que Michael foge para a Sicília e a guerra entre as famílias estoura, o autor toma meu tempo com DOIS CAPÍTULOS seguidos de Frank Sinatra  Johnny Fontane e a trama dele em tentar se entender e voltar a conviver com a ex-mulher e as filhas pequenas. Sobre isso, está escrito:

"De um modo muito astuto, fez Virgínia compreender que não gostaria que ela casasse novamente, não porque tivesse ciúmes dela, mas porque temia pela sua posição de pai. Ele estabelecera que o dinheiro fosse pago a ela de modo tal que seria enormemente vantajoso financeiramente não casar de novo. 

Ficava subentendido que ela poderia ter amantes desde que eles não se metessem em sua vida doméstica. Mas nesse ponto ele tinha absoluta confiança nela. Virgínia sempre fora excessivamente tímida e antiquada em questão de sexo. Os gigolôs de Hollywood não conseguiam lavrar nenhum tento quando começavam a cortejá-la visando alguma vantagem econômica ou os favores do seu famoso marido. Johnny não receava que ela esperasse uma reconciliação porque ele quisera dormir com ela na noite anterior. Nenhum dos dois pretendia renovar o extinto casamento. 

Ela compreendia a fome de beleza do ex-marido, seu impulso irresistível para mulheres novas muito mais bonitas do que ela. Era sabido que ele sempre dormia com suas companheiras de estrelato pelo menos uma vez. O seu encanto juvenil era irresistível para elas, tal como a beleza era para ele."






Eu já disse que tem esse boato de que Mario Puzo teria se inspirado em Frank Sinatra ao escrever Johnny Fontane? Enfim, deve ser por essa semelhança entre eles e pelos boatos que sempre circundaram Sinatra de ter laços com a máfia, algo que o cantor sempre negou. (fonte) Outro boato famoso é o de que ele teria agredido o Coppola num restaurante, mas isso não chegou a acontecer realmente. (fonte)

Os dois capítulos seguem mostrando os rumos que a vida do cantor fictício tomou após o "convencimento" de Woltz por seu padrinho e o resultado é... bom em termos, mas previsível em outros, pois o sucesso de Johnny acaba por torná-lo mais deprimido e isolado dos demais, apesar de sua reaproximação familiar. Ao ser indicado ao Oscar ele leva Nino Valenti, seu amigo dos velhos tempos para Hollywood e o tom pessimista que tudo toma é notável:

"Nino Valenti achou toda a cerimônia da concessão do prêmio da Academia muito chata, até que foi anunciado o vencedor do melhor artista masculino. Quando ouviu as palavras “Johnny Fontane”, deu um pulo para cima e começou a aplaudir. Johnny estendeu a mão e Nino apertou-a. Sabia que o seu companheiro precisava do contato humano, de alguém em quem confiasse, e Nino sentia uma enorme tristeza pelo fato de Johnny não ter ninguém melhor do que ele para partilhar esse momento de glória. 

O que se seguiu foi um verdadeiro pesadelo. O filme de Jack Woltz arrebatou todos os prêmios importantes e, assim, a festa do estúdio estava cheia de gente de jornal e de todos os futuros malandros do sexo masculino e feminino. Nino manteve a sua promessa de conservar-se sóbrio, e procurou vigiar Johnny. Mas as mulheres da festa insistiam em puxar Johnny Fontane para os quartos a fim de bater um papo e Johnny ficava cada vez mais bêbedo. Entrementes, a mulher que ganhara o prêmio de melhor atriz estava sofrendo o mesmo destino, mas estava gostando mais disso e aproveitando mais a situação. Nino a rejeitou, o único homem da festa a fazer isso. 

Finalmente, alguém teve uma grande idéia. O acasalamento público dos dois vencedores, para que todos os presentes à festa assistissem ao espetáculo. A atriz foi desnudada e as outras mulheres começavam já a tirar a roupa de Johnny Fontane. Foi então que Nino, a única pessoa sóbria ali, agarrou o semivestido Johnny e jogou-o sobre o ombro, abrindo caminho para sair da casa e levá-lo para o carro. Enquanto dirigia o carro para a casa de Johnny, Nino pensou que, se aquilo era sucesso, ele jamais o desejaria na vida."






Eu poderia acompanhar o tom moralista do livro e falar como o sucesso não é tudo na vida e blá blá blá... mas a grande verdade é que eu acho que o fato de Johnny ser um babaca imaturo provavelmente tem mais a ver com isso do que o sucesso em si. Claro que a vida dele pode ter se tornado mais difícil por ele passar a sempre se ver cercado de oportunistas e interesseiros, quase perder a voz por conta de vícios e etc... mas qualé! O cara já era um imbecil lá no começo do livro, porque ele haveria de mudar depois de ficar mais famoso? Como disse a Lindsay Ellis em seu lendário vídeo sobre o final de Game of Thrones, o poder não corrompe, revela. Sucesso é um tipo de poder, então a regra se aplica aqui também.

E essa subtrama não está no filme, então isso diz alguma coisa.

Outra subtrama que existe aqui e não no filme é a história de Lucy Mancini, a amante de Sonny. Enquanto ao que parece nos filmes existe certa confusão sobre se ela teria engravidado ou não dele, no livro fica claro que não, apesar de ela sofrer muito com a morte dele após a emboscada armada no pedágio pelos Barzini e os Tattaglia. E sinceramente, eu não sei nem o que dizer, porque a história dela no livro poderia ter sido resumida como no filme, mas aqui recebe tanto foco que eu imagino que Puzo queria muito aumentar a contagem de páginas, mas já não sabia mais o que escrever sobre os homens com arminhas, então achou melhor investir na história de Lucy, uma mulher que teria nascido com um "defeito" na vagina que a torna "larga". E Sonny, que é conhecido por todos como o mais bem dotado dos Corleone, e não é exatamente de inteligência que estamos falando.



Quando eu li a cena de sexo entre eles na qual Sonny trai a própria esposa com a madrinha de casamento da irmã, eu pensei "ok, esse livro foi escrito por um homem, já sei porque isso está aqui." mas daí, quando começou a mostrar o subsequente fluxo de consciência da personagem e todo o seu complexo com ter uma "vagina larga" e o relacionamento dela com um médico após a morte de Sonny, que promete "corrigir esse defeito" com uma cirurgia, eu fiquei igual à Roberta Miranda e já não sabia mais o que pensar. Só sentir.




Essa trama para mim tá páreo com a trama dos encontros amorosos do gato Francis em Felidae, apesar de que nesse caso, o livro todo é meio que uma bizarrice. Mas no caso do Poderoso Chefão acaba sendo mais bizarro, porque você tá lá lendo a trama toda sobre gangsters e do nada brota essa tangente que não acrescenta NADA à história. Enfim, mistérios que ficam.

Falando sobre a morte de Sonny, isso também é narrado fora de ordem cronológica, como o atentado ao pai dele: primeiro temos um capítulo falando sobre como a guerra total entre as cinco famílias mafiosas foi ruim para os negócios de todos e como Sonny fica sabendo que sua irmã sofre violência doméstica do marido, Carlo. Logo no capítulo seguinte, ele está numa maca, sendo levado para que Amerigo Bonasera, o agente funerário que pediu a Don Corleone vingança por sua filha antes, agora o prepare para o funeral, pagando assim sua dívida com o Don. 


"Lágrimas? Imagine, é só um cisco no meu olho"



Só depois é que ficamos sabendo como a emboscada no pedágio se deu, quando ele ia tirar satisfações outra vez com o cunhado. Logo que acaba de enterrar seu filho, Vito Corleone se vê obrigado a reassumir as funções de Don apesar da saúde debilitada e arrumar as condições para que Michael volte de seu exílio na Sicília. Para isso, ele se reúne com os Dons das outras cinco Famílias e os convence a selarem a paz, com uma ressalva:

"— Mas permitam-me dizer isto. Sou um homem supersticioso, um defeito ridículo, mas devo confessá-lo aqui. E assim se algum acidente infeliz ocorrer ao meu filho caçula, se algum oficial da polícia acidentá-lo, baleá-lo, se ele enforcar-se na prisão, se novas testemunhas aparecerem para depor contra ele, minha superstição me fará sentir que foi o resultado da má vontade que algumas pessoas aqui presentes ainda alimentam a meu respeito. Permitam-me que eu vá mais longe. Se meu filho for atingido por um raio, culparei algumas das pessoas aqui presentes. Se seu avião cair no mar ou seu navio afundar sob as ondas do oceano, se ele pegar uma febre mortal, se seu automóvel for atropelado por um trem, tamanha é a minha superstição que porei a culpa na má vontade que algumas pessoas aqui presentes alimentam. Senhores, essa má vontade, esse azar, eu jamais esquecerei."





Cara, se restava dúvida, agora não resta mais: Vito Corleone é do signo de câncer, com certeza. Uma frase dessa é muito coisa de canceriano.

Michael, que a essa altura já tinha se estabelecido na Sicília e se casado com a camponesa Apolônia, sofre um atentado com um explosivo implantado em seu carro e sua esposa morre em seu lugar. Em meio a todos esses desdobramentos e tendo tido contato com a cultura de seus ancestrais, ele está prestes a concluir sua transformação completa em sucessor do pai:

"Depois de cinco meses de exílio na Sicília, Michael Corleone começou finalmente a compreender o caráter do pai e o seu destino. Começou a compreender homens como Luca Brasi, o implacável caporegime Clemenza, a resignação da mãe e a aceitação do papel dela. Pois na Sicília viu o que eles teriam sido se tivessem resolvido não lutar contra o destino. Compreendeu por que Don Corleone sempre dizia: “O homem tem apenas um destino.” Começou a compreender o desprezo pela autoridade e pelo governo legal, o ódio por qualquer homem que infringisse a omertà, a lei do silêncio."

De volta aos Estados Unidos, ele reencontra Kay, e eles reatam o relacionamento e se casam. Com a "paz" e a aposentadoria de Vito vem o declínio dos Corleone e a ascensão dos Barzini, Michael assume a posição de Don e promete colocar os negócios da família "na lei", mudando as operações para Nevada e distribuindo os negócios de Nova York para os que quisessem permanecer ali. Tom Hagen é mandado como advogado para Las Vegas, deixando de ser consiglieri, cargo agora ocupado pelo próprio Vito para o Don Michael. De forma geral, todos aceitam com relutância as mudanças, principalmente Tessio, que insiste em duvidar dos novos rumos de negócio. Tom Hagen também reclama de ser colocado de lado depois de toda sua assistência.

"Hagen terminou a sua bebida e antes de ir embora fez uma censura branda a Michael. — Você é quase tão bom quanto seu pai, mas há ainda uma coisa que precisa aprender. 
— Que é? — perguntou Michael delicadamente. 
— A dizer “não” — respondeu Hagen. Michael acenou com a cabeça gravemente. 
— Você tem razão. Eu me lembrarei disso. Quando Hagen partiu, Michael disse brincando para o pai: — Assim, você me ensinou tudo o mais. Diga-me como dizer “não” às pessoas de um modo que elas gostem. 
Don Corleone andou um pouco e foi sentar-se atrás da escrivaninha. — A gente não pode dizer “não” a pessoas de quem gosta, nem sempre. Este é o segredo. E então quando a gente diz, esse “não” tem de soar como um “sim”. Ou a gente tem de fazê-las dizer “não”. Você ainda precisa de muito tempo e muito aborrecimento para aprender isso. Mas eu sou um velho antiquado, você é a geração moderna, não preste atenção ao que estou dizendo. 
Michael deu uma gargalhada." 

Pouco tempo depois, porém, Vito Corleone sofre um ataque do coração enquanto regava sua hortinha ao lado do netinho e vem a falecer. É uma cena muito tocante, descrita com bastante sentimentalismo:




"O menino saiu correndo para chamar o pai. Michael Corleone e alguns homens que estavam no portão da alameda correram para o jardim e encontraram Don Corleone estirado no chão, agarrando punhados de terra. Levantaram-no e o conduziram para a sombra do pátio de pedra. 

Michael ajoelhou- se ao lado do pai, segurando-lhe a mão enquanto os outros homens telefonavam pedindo uma ambulância. Com um grande esforço o Don abriu os olhos para ver o filho uma vez mais. O violento ataque cardíaco tornou o seu rosto corado quase azul. Ele estava nas últimas. Sentia o cheiro da horta, o escudo amarelo de luz feria-lhe os olhos, e ele murmurou: — A vida é tão bonita. 

Foi poupado da triste cena de ver as lágrimas das mulheres de sua família, morrendo quando elas estavam na igreja, antes da ambulância chegar, sem qualquer socorro médico. Morreu cercado de homens, segurando a mão do filho que ele mais amara."

Os Dons das cinco famílias e todos os seus protegidos se despedem do velho mafioso, mas não há tempo para lamentações, pois Michael sabe que a morte do pai é o sinal que os Barzini e os Tattaglia esperavam para avançar sobre eles. Não demora muito para perceberem que Tessio é quem está pretendendo trair Michael para os Barzini, arranjando um encontro entre eles. Mas Michael se prepara e, um dia depois de batizar o sobrinho, filho de Connie e Carlo, ele e os homens restantes dão início à retaliação dos Corleone: Fabrizzio, o camponês que deveria ter feito a guarda de Mike na Sicília, mas o traiu resultando na morte de sua primeira mulher é rastreado ao longo daqueles dias e morto na pizzaria onde estava trabalhando; o chefe dos Tattaglia é morto no motel, e o chefe dos Barzini é morto enquanto esperava em seu carro. E Tessio também encontra seu fim na Alameda dos Corleone:

"— O chefe diz que vai num carro separado. Mandou vocês dois irem andando. 

Tessio franziu as sobrancelhas, virou-se para Hagen e exclamou: — Diabo, ele não pode fazer isso; isso vai atrapalhar toda a minha combinação. Naquele momento, outros três guarda-costas o cercaram. 

Hagen disse cortesmente: — Eu tampouco posso ir com você, Tessio. 

O caporegime compreendeu tudo numa fração de segundo. E aceitou a situação. Houve um momento de fraqueza física, depois ele se recuperou e disse a Hagen: — Diga a Mike que isso era apenas negócio, sempre gostei dele. 

Hagen acenou com a cabeça. — Ele compreenderá. 

Tessio fez uma pausa rápida e depois perguntou suavemente: — Tom, você pode me tirar dessa situação? Em homenagem aos velhos tempos? 

Hagen balançou com a cabeça. — Não — respondeu. Tom viu os guarda-costas cercarem Tessio e o conduzirem para um carro que estava esperando. Sentiu-se um pouco triste. Tessio fora o melhor soldado da Família Corleone; o velho Don confiara nele mais do que em qualquer outro homem com exceção de Luca Brasi. Era lamentável que um homem tão inteligente cometesse tal erro fatal de julgamento tão tarde na vida."

O último a ser punido é Carlo, que agiu para facilitar a morte de Sonny, atraindo-o para a armadilha dos Barzini ao espancar a esposa e provocar sua ira novamente. Assim, Michael ajusta suas contas com ele e vinga o irmão:

"Carlo foi até a porta e abriu-a. Sentiu o corpo todo enfraquecer invadido por um terrível medo. Postado no vão da porta estava Michael Corleone, com a cara que parecia exatamente a daquela morte que Carlo Rizzi via freqüentemente em seus sonhos. Por trás de Michael Corleone estavam Hagen e Rocco Lampone. Eles pareciam solenes, como pessoas que tinham vindo com a maior relutância dar más notícias a um amigo. Os três homens entraram na casa e Carlo Rizzi levou-os para a sala de estar. Restabelecido do primeiro choque, ele pensou que tivesse sofrido um ataque de nervos. 
As palavras de Michael fizeram-no sentir-se realmente doente, fisicamente enjoado. 

— Você tem de responder pela morte de Santino — disse Michael. 
Carlo não respondeu, fingindo não entender. Hagen e Lampone separaram-se, indo para paredes opostas da sala. Carlo e Michael encararam-se. 

— Você entregou Sonny ao pessoal de Barzini — disse Michael categoricamente. — Aquela pequena farsa que você desempenhou com minha irmã, será que Barzini o enganou dizendo que isso tapearia um Corleone? 

Carlo Rizzi respondeu apavorado, sem dignidade, sem qualquer vestígio de orgulho: — Juro que sou inocente. Juro pela cabeça de meus filhos que sou inocente. Mike, não me faça isso, por favor, Mike, não me faça isso. 

— Barzini está morto — retrucou Michael tranqüilamente: — Phillip Tattaglia também. Quero ajustar todas as contas da Família esta noite. Portanto, não me diga que você é inocente. Seria melhor que você admitisse que é culpado."

Michael o faz confessar a traição, prometendo mandá-lo para longe em vez de matá-lo, em consideração à irmã e aos sobrinhos. Mas Michael aprendeu muito com o pai para saber que um traidor não pode ficar impune, e o destino de Carlo é o mesmo de seus comparsas:

"Carlo entrou no carro. A sua camisa de seda estava ensopada de suor. O veículo partiu, movendo-se rapidamente na direção do portão. Carlo começou a virar a cabeça para ver se conhecia o homem que estava sentado atrás dele. 

Naquele momento, Clemenza, tão ardilosa e graciosamente como uma menina colocando uma fita na cabeça de um gatinho, lançou o garrote em volta do pescoço de Carlo Rizzi. A corda lisa começou a cortar-lhe penetrantemente a pele à medida que Clemenza o estrangulava puxando a corda com toda a força; o corpo de Rizzi saltou no ar como um peixe numa linha de pesca, mas Clemenza segurava-o firme, apertando o garrote até que o corpo ficou mole. 

De repente, sentiu um mau cheiro no interior do carro. O corpo de Carlo, com o esfíncter solto pela morte que se aproximava, descarregou os excrementos. Clemenza continuou a apertar o garrote por mais alguns minutos por medida de segurança, depois soltou a corda e enfiou-a no bolso. Recostou-se no assento acolchoado, enquanto o corpo de Carlo tombava de encontro à porta. Após alguns momentos, Clemenza abaixou o vidro da janela para deixar sair o fedor."

O resultado geral é ótimo para a Família, mas causa um problema na família de Michael, pois Connie logo percebe o que aconteceu e acusa Michael de matar seu marido friamente, o que ele de certo fez. Kay quer acreditar que não, mas logo ela confronta o marido, que nega tudo. E ela percebe que o homem em quem ela confiava tanto já não é mais o mesmo agora:

"Kay pôde ver como Michael estava ali pronto para receber a homenagem daqueles homens. Ele lembrou a ela as estátuas de Roma, estátuas daqueles imperadores da antiguidade, que, por direito divino, mantinham o poder de vida e morte sobre os seus semelhantes. Michael estava com a mão na cintura, o perfil de seu rosto mostrava um poder orgulhoso, frio, seu corpo estava descuidadamente, arrogantemente, à vontade, o peso repousando num pé levemente por trás do outro. Os caporegimes postados diante dele. Naquele momento Kay compreendeu que aquilo tudo de que Connie acusara Michael era verdade. Ela voltou para a cozinha e chorou."

No fim, os Corleone se reestabelecem em Nevada, Connie se reconcilia com Michael e arruma um segundo marido e após quase se separar de Michael, Kay retorna para ele após uma conversa com Tom Hagen sobre o caso todo. Kay não ficou decepcionada por ele ter mandado matar o cunhado, mas pela mentira, ao que o ex-consiglieri lhe responde:

"— Você ainda não compreende — disse ele. — Se você contasse a Michael o que eu lhe disse hoje, aqui, eu seria um homem morto. — Ele fez nova pausa e arrematou. — Você e os filhos são as únicas pessoas neste mundo a quem ele não pode fazer mal."

O livro termina com Kay rezando pela alma do marido, agora Don Michael e indo às missas todas as manhãs, exatamente como a mãe dele fazia: 

"Livrou a mente de todos os pensamentos a respeito de si mesma, de seus filhos, de todo rancor, de toda rebelião, de todas as dúvidas. Depois, com um desejo profundo e realmente espontâneo de crer, de ser ouvida, como fazia todos os dias desde a morte de Carlo Rizzi, ela pronunciou as necessárias orações pela alma de Michael Corleone."







E este é o livro do Poderoso Chefão. Acredito que a esta altura fica bem claro que, apesar dos problemas na estrutura narrativa dele, por vezes se alongando demais em sub-tramas desnecessárias, o que sustenta a história é em grande parte o carisma dos personagens principais, em especial Vito Corleone. E provavelmente este é um dos grandes triunfos do livro, o que talvez tenha saltado mais aos olhos de Coppola que o fez se interessar pela história e querer adaptá-la para o cinema, apesar muitos terem sido contra na época.

Mas afinal, o que o personagem do padrinho tem de tão icônico?


Como explicar Don Corleone: masculinidades, glamourização da máfia e da criminalidade branca

 

"Por que devo ter medo agora? Muita gente tem procurado matar-me desde os meus doze anos de idade." Vito Corleone





No livro existe um capítulo todo dedicado a contar resumidamente a história da origem e ascensão do mafioso com voz do Mum Rá na dublagem brasileira. É um capítulo sensacional, narrando a fuga de Vito ainda criança da Sicília para os Estados Unidos e como ele vai de empregado numa mercearia para chefão no mundo do crime. Eu não sei como isso foi adaptado para o segundo filme, mas vamos falar do personagem em si.



Todo mundo fala sobre o gato que o Don Corleone acaricia no filme ser na verdade um gato de rua que apareceu nos estúdios e que parecia muito contente em estrelar a película, mas o modo como isso influencia a percepção que nós temos do personagem não é improviso: tudo no filme e no livro também é feito de modo a irradiar o carisma dele. 



Desde o jeito de velho ranzinza como ele reclama dos "pezzonovanti", até o modo como atende aos pedidos mais urgentes de seus protegidos, Vito Corleone transita entre o mundo dos homens "comuns" e o mundo secreto da máfia como uma lenda e um herói: ao mesmo tempo em que ele encarna o mito estadunidense do "self-made man", o homem que "veio do nada" e se fez sozinho (o que é irônico, para dizer o mínimo), ele também é humanizado o bastante para nos identificarmos com algumas de suas posturas ou reconhecermos defeitos até bem graves nele (defeitos não-óbvios, como ele ser um assassino e criminoso, eu quero dizer): 

"Johnny Fontane deu uma gargalhada. — Padrinho, nem todas as mulheres são como as antigas mulheres italianas. Ginny não topará isso.

— Porque você procedeu como um finocchio — disse Don Corleone zombeteiramente. — Você deu a ela mais do que o tribunal mandou. Você não bateu na cara da outra porque ela estava fazendo um filme. Você deixa as mulheres imporem as suas condições e elas não são competentes neste mundo, embora certamente elas sejam santas no céu, enquanto nós homens sejamos queimados no inferno."

"Gente, se é pra cancelar, que seja pelo motivo certo"


É claro que esse é um ponto de vista totalmente condizente com o período em que a história se passa e principalmente com a cabeça que um idoso mau-caráter teria sendo ainda mais velho que a época, mas enfim, não pra deixar passar as várias vezes que ele é machista, inclusive quando sua própria filha, Connie, se queixa das agressões do marido. 

"A mãe demonstrara alguma pena, e até pedira ao pai que falasse com Carlo Rizzi. Mas o pai recusara. — Ela é minha filha — retrucara — mas agora pertence ao marido. Ele conhece o seu dever. Nem o rei da Itália se atreve a meter-se nas relações de marido e mulher. Vá para casa e aprenda a comportar-se de modo que ele não bata em você. 

— Você já bateu em sua mulher? — indagou Connie zangada com o pai. Era a sua filha preferida e podia falar com o pai nesse tom impertinente. — Nunca ela me deu motivo para bater nela — respondeu-lhe. E a mãe balançou a cabeça afirmativamente e sorriu. 

Connie contou-lhe como o marido lhe havia tirado o dinheiro do presente de casamento e nunca lhe dissera o que fizera com ele. O pai deu de ombros. — Eu teria feito o mesmo, se minha mulher fosse tão insolente como você — acrescentou o pai. Assim, voltou para casa, tanto desnorteada quanto apavorada. Sempre fora a predileta do pai, e não podia compreender a frieza dele agora."




Felizmente, (ou infelizmente para ele) Sonny não comprou essa de não meter a colher em briga de marido e mulher e lavou a alma de todo mundo numa cena épica que eu não colocarei a transcrição das palavras do livro porque acho que é impossível ela ficar a par da catarse que é no filme:



Realmente, um grande homem, em todos os sentidos.





Quero dizer, menos no sentido de trair a esposa rotineiramente, mas ok?


Assim como o Mal assume a forma de Regina George em Meninas Malvadas, Don Corleone assume a forma de pai, padrinho e até mesmo um ser com vontade quase divina (ou demoníaca, se preferir) como na cena logo no começo, quando ele vai visitar seu amigo e antigo conseglieri, Genco Abbandando. O motivo de Tom Hagen, um irlandês que era amigo de infância de Sonny e acabou adotado por Corleone nessa época, ser o consiglieri é exatamente o do adoecimento de Genco, que no leito de morte e delirando, implora que o padrinho lhe salve:

"— Padrinho, Padrinho — gritou cegamente — salve-me da morte, eu lhe suplico! Minha carne está queimando meus ossos, e sinto os vermes comerem meus miolos. Padrinho, cure-me, você tem poder para isso, enxugue as lágrimas de minha pobre mulher! Brincamos juntos na aldeia, quando crianças, e agora você deixará que eu morra, quando tenho medo do inferno por causa dos meus pecados? — Don Corleone manteve-se calado. — É o dia do casamento de sua filha — prosseguiu o moribundo — você não pode recusar-me isso." 





Uma coisa que não deve ser perdida de vista nunca, porém, é o quão fragilmente os ideais familiares propagados pelo chefão se sustentam na prática — a resposta é que não; Como o vídeo do Gustavo Henrique do canal Balcão Pop mostra, Don Corleone vive a falar sobre como o homem deve passar tempo com a família, fazer tudo pela família, mas a grande verdade é que no meio do casamento da filha ele se retira em seu escritório para receber pedidos de tortura e dentre outros crimes e favores.  Por mais que tudo tenha o enfeite da retórica furada sobre "amizade" e "família" e etc, é tudo uma questão de negócios.

"Don Corleone ergueu-se de trás da escrivaninha. Seu rosto ainda permanecia impassível, mas a sua voz soava como morte fria. — Nós nos conhecemos há muitos anos, você e eu — disse ele ao agente funerário — mas até o dia de hoje você nunca tinha vindo a mim pedir conselho ou ajuda. Não me lembro da última vez que você me convidou a tomar um café em sua casa, embora a minha mulher seja madrinha de sua única filha. Vamos ser francos. Você rejeitou minha amizade. Você tinha medo de me dever alguma coisa. [...] Agora, você vem a mim e diz: “Don Corleone, faça justiça.” E você não pede com respeito. Não me oferece sua amizade. Você vem à minha casa no dia do casamento de minha filha e me pede para matar, dizendo — aqui a voz de Don Corleone fez uma imitação desdenhosa — “pagarei o que o senhor pedir”. Não, não, eu não estou ofendido, mas o que fiz eu para você me tratar de modo tão desrespeitoso? 

Bonasera chorou em sua agonia e medo: — A América era boa para mim. Eu queria ser um bom cidadão. Queria que minha filha fosse americana. 

Don Corleone bateu palmas com aprovação decisiva. — Bem dito. Muito bem. Então você não tem do que se queixar. O juiz decidiu. A América decidiu. Leve flores para sua filha e uma caixa de bombons, quando for visitá-la no hospital. Isso a confortará. Fique contente. Afinal de contas, isso não é uma coisa séria, os rapazes eram jovens, ardorosos, e um deles é filho de um político poderoso. [...] A vida é cheia de infortúnios. 

A ironia cruel e desdenhosa com que tudo isso foi dito e a raiva controlada de Don Corleone reduziram o pobre agente funerário a uma geléia trêmula, mas ele desabafou corajosamente outra vez: — Peço-lhe justiça. 

— O tribunal lhe fez justiça — respondeu Don Corleone laconicamente. 

Bonasera balançou a cabeça obstinadamente. — Não. Eles fizeram justiça aos jovens. Não fizeram justiça a mim. 

Don Corleone reconheceu essa fina distinção com um aprovador aceno de cabeça, depois perguntou: — Qual é sua justiça? 

— Olho por olho — respondeu Bonasera. [...]

— Bem — disse Don Corleone, a mão no ombro do homem — você terá a sua justiça. Algum dia, e esse dia talvez nunca chegue, eu lhe pedirei que me faça um serviço em troca. Até esse dia, considere essa justiça como um presente de minha mulher, a madrinha de sua filha. "




Longe de ser um homem que ascendeu sozinho por conta própria (pleonasmo proposital, ok) na vida, Don Corleone se fez em cima do bom e velho monopólio, galgando posições mais e mais elevadas às custas de muitas vidas. Longe de ser simplesmente um homem fugindo da opressão em sua terra natal, ele se tornou nos Estados Unidos também um agente dessa opressão, assim como todos os outros Dons de suas famílias. 

"Como muitos negociantes de gênio, ele entendia que a concorrência livre era ruinosa, o monopólio era eficiente. E assim simplesmente procurava conseguir esse monopólio eficiente. Havia atacadistas de azeite, no Brooklyn, homens de temperamento irritável, teimosos, contrários à razão, que se recusavam a perceber, a reconhecer, a visão de Vito Corleone, mesmo depois que ele tinha explicado tudo a eles com a maior paciência e os mínimos detalhes. Com esses homens, Vito Corleone levantava os braços em desespero e mandava Tessio ao Brookly para instalar o quartel-general e resolver o problema. Armazéns eram incendiados, caminhões carregados de azeite eram propositadamente tombados e o líquido oleoso se espalhava formando lagos nas ruas calçadas do cais. 

Um homem impetuoso, um milanês arrogante com mais fé na polícia do que um santo tinha em Cristo, realmente procurara as autoridades para apresentar queixa contra seus compatriotas italianos, infringindo a lei de dez séculos da omertà. Mas antes que a questão pudesse ir um pouco adiante, o atacadista desapareceu, para nunca mais ser visto, abandonando sua dedicada esposa e três filhos, que, graças a Deus, já estavam bem crescidos e em condições de tomar conta do negócio e chegar a um acordo com a Companhia de Azeite Genco Pura."

O tempo inteiro ele e os demais personagens repetem que seria uma hipocrisia julgá-los por suas ações, afinal, os juízes e policiais são tão corruptos e o Estado de modo geral é corrupto e opressor, portanto, eles estariam apenas se "defendendo seus interesses" em meio a toda essa hipocrisia da sociedade sociedosa. Enfim...


"O totem da Máfia é a família, a Famiglia, uma palavra antiga, um tanto pesada nos dias de hoje [...] A Máfia se organiza em torno da Família, da autoridade indiscutível do Boss, com direito de vida e morte sobre todos os membros. O pai de família é a instância suprema de uma organização autoritária e visceralmente hierárquica. Hierárquica, portanto ritual, profundamente respeitosa e exageradamente formal no trato com os superiores, sempre repassado do temor pela represália a uma falta de compostura, ainda que involuntária. Todos os que eram admitidos à presença do chefe de família, serviçais, comerciantes, advogados, padres, políticos, eram obrigados a manter o mesmo respeito que os familiares mais próximos. A Máfia reproduz em seu dia-a-dia o ritual de vassalagem medieval." fonte.




As mulheres da família Corleone são o exemplo claro e cristalino do quanto esse conceito de "família" não é realmente respeitado pelos homens que a integram: Vito nega ajuda à própria filha quando esta se queixa de apanhar do marido; Sonny trai a esposa regularmente com uma amante; Freddo engravida inúmeras garotas num dos hotéis gerenciados por "amigos" da família, mandando-as abortarem com o mesmo médico que depois operaria a amante de Sonny (o que é hipócrita se considerarmos os valores profundamente conservadores dos Corleone). Ao fim, Michael mente para a esposa sobre ter matado o cunhado e a submete a mesma vida que sua mãe levou, uma vida de silêncio em que ela não pode fazer perguntas sobre o que está de fato acontecendo. O final do livro parece até ok, se desconsiderarmos isso tudo, mas pelo que eu soube, as continuações exploram ainda mais essa situação de opressão patriarcal e chega a ser ridículo como as pessoas simplesmente não captam a mensagem.


"Eu vou falar só mais uma vez: Não é pra idolatrar a porra do Bope!"


"A Sra. Corleone sempre perguntava por que Kay não pensava em se tornar católica, ignorando o fato de que o filho de Kay já tinha sido batizado como protestante. Assim, Kay sentia ser apropriado perguntar à velha senhora se ela ia à igreja todas as manhãs, por ser uma parte necessária do credo católico. 

Pensando que isso pudesse impedir Kay de se converter ao catolicismo, a Sra. Corleone respondeu: — Oh, não, não, alguns católicos só vão à igreja na Páscoa e no Natal. A pessoa vai quando tem vontade de ir. 

Kay deu uma gargalhada e perguntou: — Então por que a senhora vai toda manhã? 

De um modo completamente natural, mamãe Corleone respondeu: — Eu vou por meu marido — ela apontou para o chão — para que ele não vá para lá. — Fez uma pausa e acrescentou: — Faço orações pela alma dele todo dia para que ele vá lá para cima — e apontou o céu."


As mulheres dos Corleone no fundo sabem que seus maridos não merecem ir para o céu. Elas sabem que tudo isso é errado, mas não se posicionam contra, não exercem nenhum poder nesse âmbito. O máximo que podem fazer é manter as aparências, ajudar a sustentar a máscara moral que esconde toda a sujeira feita por eles enquanto se veem aprisionadas pela lógica que diz "protegê-las" mas que na verdade nunca pensa realmente no bem-estar delas, do contrário, cessariam de vez as atividades criminosas.

E falando em atividades criminosas:

"Por trás de cada fortuna há um crime. - Balzac"

A citação que abre o livro não poderia ser mais bem colocada. Num mundo capitalista que valoriza mais e mais o poder e o dinheiro acima de todas as outras coisas, não é de se estranhar a apropriação que os coaches fizeram do Poderoso Chefão e outros filmes da máfia. 



"Uma metodologia baseada em filmes de máfia que você já viu,
mas totalmente diferente de tudo que você já viu", breve num coach perto de você.


Como eu disse antes, eu não julgo quem gosta dos filmes ou do livro, mas não é mesmo incrível que uma obra que critica o poder patriarcal e o modo inconsequente tipicamente capitalista de lucrar a qualquer custo e passando por cima de tudo e todos seja usado para promover a mesma doutrina criticada. As pessoas não recebem a mensagem. É isso. 




Não que outros livros da época não trouxessem elementos semelhantes, com gangters e mau-feitores, mas o que Mario Puzo fez ao escrever esse livro foi dar mais humanidade aos bandidos até então representados de forma quase cartunesca e mesmo preconceituosa. Puzo é italiano e, por mais que a escrita e seus personagens tenham eles próprios agora se tornado os clichês do gênero máfia, foi uma inovação para uma época em que italianos e irlandeses eram retratados como "bandidos" sem conflitos interiores nem cultura própria ou idiossincrasias. Humanidade em outras palavras.

"Aquela visão dos italianos como “o outro”, combinada com a ideia de que as regras rígidas dos mafiosos excluíam o envolvimento com quem não fizesse parte do seu meio, tornava os gangsters menos ameaçadores. “De um modo geral, as pessoas têm a impressão de que se eles não têm qualquer contato com as coisas que a máfia fazia – sem drogas, sem empréstimos e sem jogos ilegais, os admiradores da máfia não tinham nada a temer”. [...] Porque sua violência parecia dirigida a suas próprias comunidades, e a ninguém mais, tornou-se fácil romantizar a história." (fonte)

Interessante, onde será que eu já vi isso antes...

Substitua "milicianos" por "mafiosos"

A ideia de que os mafiosos só se matam entre si e fazem mal apenas às pessoas de sua própria comunidade ou envolvidas na máfia não é sustentada por uma leitura mais atenta do livro, mas as pessoas realmente acabaram interpretando assim. Afinal, fica mais fácil aproveitar a história se você não se lembrar de todos os assassinatos e de como o crime organizado está encoberto em praticamente todas as esferas da sociedade, com ramificações na mídia, no ramo industrial e alimentício (negócio de azeite), na polícia, na justiça, no governo, na política e no cu de quem tá lendo.



A minha crítica é menos à obra em si e mais sobre essa espécie de culto a séries e filmes sobre crimes ( e não por acaso, cometidos por brancos). Nossa visão cultural sobre criminalidade é dúbia: bandido bom é bandido morto, contanto que esse bandido seja negro, pobre e traficante na favela. 




Se for branco e morar num condomínio gerenciando todo o tráfico enquanto vive como classe alta, será considerado um homem de muitas faces, com seus defeitos é claro, mas um certo "caráter" que pode levá-lo a ser citado como um exemplo apenas "um pouco torpe" de masculinidade e poder. 



Assim como Vito Corleone, Frank Costello reprovava o tráfico de entorpecentes e se recusou a entrar nele. Mas será que faz tanta diferença assim, considerando todos os outros crimes?




Anomia social e o Estado de Direito

Aviso de Gatilho: aliciamento de menores e pedofilia




“Um advogado com sua pasta pode roubar mais do que cem homens armados.” Don Corleone






Este artigo já está maior que o pa* do Sonny, então vamos terminando com isso.

A cena acima foi deletada da versão final do filme. Nela, Janie, uma atriz-mirim, aparece bastante desnorteada na mansão do produtor de cinema e a mãe a puxa de volta para o quarto quando vê que Tom Hagen a encara com assombro. O que a cena descreve na realidade, é que Janie era vítima de estupros praticados por Woltz. E isso é confirmado no livro.

"Enquanto esperava o carro, entre as colunas profusamente iluminadas da mansão, Hagen viu a linda menina loura de doze anos e a mãe, que ele havia visto no escritório de Woltz de manhã, preparando-se para entrar numa comprida limusine já estacionada na pista de saída. Agora, porém, a boca esquisita da menina parecia ter-se transformado numa massa rósea, espessa. Seus olhos azuis estavam toldados, e quando ela desceu as escadas em direção ao carro aberto, suas pernas compridas cambaleavam como as patas de um potro aleijado. A mãe sustentava a menina, ajudando-a a entrar no carro, sussurrando ordens no seu ouvido. A cabeça da mulher virou-se para dar uma olhada furtiva para Hagen, e ele viu em seus olhos um triunfo, um triunfo abrasador, animalesco. Depois, a mulher também entrou na limusine. 

Assim, esse era o motivo por que ele não conseguira a carona de avião de Los Angeles, pensou Hagen. A menina e a mãe haviam feito a viagem com o produtor cinematográfico. Isso dera a Woltz tempo bastante para descansar antes do jantar e para fazer o trabalho na menina. E Johnny queria viver nesse mundo? Boa sorte para ele, e boa sorte para Woltz." 

Por que Coppola deletou a cena? Bom, eu pesquisei mas não achei nenhum pronunciamento oficial. Diante disso, só nos resta especular, apesar de muita gente ter uma ideia do porquê. Provavelmente a carapuça de alguém na época serviu e pelo jeito, continua servindo a muita gente em Hollywood e pelo mundo artístico afora, infelizmente.


Harvey Weinstein, ex-produtor preso por ter estuprado e agredido sexualmente mais de 80 mulheres ao longo da carreira.



Uma das razões apontadas para a cena ter sido cortada, porém, é que Coppola e Puzo, que trabalhou também no roteiro, pensassem que enfatizar o crime sexual de Woltz preparando o terreno para sua subsequente punição indireta pelo padrinho contribuiria para aumentar ainda mais uma visão "positiva" do público sobre a máfia. Eu tendo a concordar e discordar ao mesmo tempo, visto que no filme vemos Hagen mencionar o caso a Don Corleone. Mas entendendo o público bronco como vejo agora, é bem possível que esse fosse o efeito final sim. Em se tratando de filmes e histórias, queremos sempre ver as coisas preto no branco, tudo claramente separado em vilões e mocinhos. Esquecemos que Vito não mandou Luca colocar a cabeça decepada do cavalo caríssimo de Woltz na cama dele por ter ficado indignado com o estupro da menina (ele ficou, de fato). Não, ele fez isso porque Woltz recusou a ordem de dar o papel do filme ao seu afilhado preferido. Mesmo quando tramava as vinganças pelas mortes dos filhos, tudo era sempre no momento mais conveniente para manter/aumentar o poderio. 





Nunca nada foi pessoal. Eram apenas negócios, negócios esses que se desenrolam num regime capitalista, onde, ao contrário do que se poderia imaginar pelo que é propagado, o crime organizado sempre teve um campo fértil de atuação, influenciando inclusive em conflitos internacionais. Crimes do colarinho branco, isto é, que não envolvem violência direta e são praticados pela classe mais abastada e empresas, fazem parte dessa criminalidade. Então, a máfia assim como as milícias e qualquer outra organização que atue paralela ao sistema "oficial" não pode ser encarada como simplesmente uma resposta às contradições e falhas desse sistema, mas sim como uma parte desse mesmo sistema de opressão. Elas não são contrárias uma a outra, mas acabam interligadas à medida em que o crime organizado infiltra seus membros e parceiros no sistema como advogados, policiais, juízes, desembargadores.


De acordo com a Wikipédia, a definição de Estado Democrático de direito é: 

"[...] um conceito de Estado que busca superar o simples estado de direito concebido pelo liberalismo. Garante não somente a proteção aos direitos de propriedadeː mais que isso, defende, por meio das leis, uma variedade de garantias fundamentais, baseadas no chamado "Princípio da Dignidade Humana". (fonte)

O problema é que, como fica bastante claro em o Poderoso Chefão, as leis não são respeitadas como deveriam, e muito menos o princípio da dignidade humana. Tudo funciona muito mais na base da frase dita por Sólon, mas que se tratando da internet, pode ter sido dita igualmente por Clarice Lispector, por que não?

 

" Leis são como teias de aranha: boas para capturar mosquitos, mas os insetos maiores rompem sua trama e escapam "


E eu nem estou entrando no mérito de discutir os outros problemas do sistema jurídico, como condenações erradas de inocentes, lentidão e parcialidade em julgamentos e etc. O que fica bastante claro para qualquer um ao examinar o modo como funcionam o sistema penal brasileiro e na outra ponta as cadeias e penitenciárias superlotadas é que o Estado de direito é na verdade uma espécie de farsa. Ele pune somente as pessoas das camadas sociais mais baixas e desfavorecidas, ainda assim, incorrendo em diversos erros e injustiças grotescas, enquanto o que opera para os mais ricos e influentes é a impunidade. Os únicos casos onde pessoas ricas e influentes chegam a ser condenadas (sejam essas condenações justas ou não) é quando existe alguém ou algum grupo mais rico e influente do que elas atuando por detrás dos panos para isso acontecer, ou um forte clamor popular (que no fim das contas, ainda assim, acaba sendo menos importante).


Assim, não é de se estranhar que numa sociedade como a nossa, fundada em valores tão hipócritas, algumas pessoas realmente achem que grupos paramilitares como as milícias possam ser consideradas "boas para a sociedade" de alguma forma. A justiça brasileira não puniu realmente os torturadores agentes da ditadura militar assim como também não pune os torturadores e executores de agora que agem à mando do Estado. E essa dança segue, com as autoridades fingindo que se importam com "os princípios de dignidade humana" e a sociedade em retorno fingindo que não vê os corpos se empilharem ou desaparecerem enquanto rezam por uma salvação que sabemos não merecermos de todo.



 


Conclusão


O Poderoso Chefão é um clássico do cinema e da literatura por vários motivos. Vito, Michael e eu citaria mesmo a Kay, são personagens interessantes em suas diferentes visões de mundo e necessidades. Vito tem um império estabelecido no mundo do crime e precisa de um sucessor, Michael só queria levar uma vida de "americano" normal com Kay, e ela é claro, queria viver seu romance com um homem que a respeitava como igual e em quem ela confiava. Ao fim, só um deles acaba conseguindo satisfazer a própria vontade, por mais que a princípio Vito não quisesse realmente envolver os filhos em seus negócios escusos. O conflito fica bem mais centrado nos três, mas os outros núcleos e personagens secundários também são por vezes interessantes, mostrando o funcionamento interno da máfia e suas intrigas. 

Após assistir a ótima análise do canal Balcão Pop (que é o segundo link abaixo na lista) eu tenho que dizer que até mesmo as tramas de Johnny Fontane e Lucy Mancini tem um papel importante ao amplificarem os temas de masculinidade tóxica e dominação patriarcal que repercutem no livro inteiro. 

Ou seja, quem achou que o livro era pior que o filme, achou errado. Eles são semelhantes, e eu pessoalmente acho o livro melhor por condensar em 460 páginas o que Coppola levou três filmes para explanar. Mas é claro, essa é só a minha opinião.








Referências: