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quarta-feira, 22 de março de 2017

Um Estudo em Vermelho





Olá, queridos! Como estamos hoje?

Não, é claro que eu só perguntei isso por educação. Não me mandem e-mails respondendo uma questão retórica dessas.

Hoje, teremos mais uma resenha, e eu acredito que vocês gostarão dela. Eu acho que sim...

Caso contrário, podemos fazer um passeio de barco, numa certa fábrica...

"E as lâminas vão moendo... Sim!"
...

Como estão todos caladinhos agora, acho que podemos começar.

Sir Arthur Conan Doyle pode ser visto como um caso particular de escritor, pois sua criação não só é famosa, como também parece engolfar todo um conceito. Em suas várias e muitas adaptações e releituras, Sherlock Holmes se tornou praticamente um sinônimo de detetive. São muito raras as vezes em que um personagem só toma uma proporção dessas. Talvez daqui a alguns anos, algo semelhante possa acontecer de novo, mas eu realmente duvido muito.

 
Sério, você não acha que ele se vestiria de Harry Potter, não é? Pois é.


Um Estudo em Vermelho é a novela de estreia do Sherlock Holmes, por assim dizer.  E eu acho que a essa altura, não preciso explicar que estou falando de novela literária e não daquelas coisas que a sua avó assiste na Record, não é?

Pffft.... okay:

novela
substantivo feminino
  1. 1.
    lit narrativa breve, maior do que um conto e menor do que um romance, e que se caracteriza por apresentar uma espécie de concentração temática em torno de um número restrito de personagens.
Satisfeitos? Bom.

Algo que me chama a atenção sempre que eu leio um livro ou conto original do Sherlock Holmes, isto é, escrito pelo Arthur Conan Doyle, é que Sherlock sempre me soa mais sentimental do que nas adaptações. 

Sério, isso não é papo de fangirl yaoísta, há várias passagens nos livros originais em que o autor tenta mostrar um lado mais humano do personagem, como quando ele se desculpa com Watson pelas tantas vezes em que o tratou como um idiota, ou foi arrogante. Sem falar na própria solidão do personagem e no modo como acaba sendo visto pelos outros, ora como "frio e desumano", ora como "uma aberração admirável". Por mais clichê que isso soe, não é o caso do Sherlock dos livros, ao contrário de outros por aí...


É, é de você mesmo que eu estou falando. Seu pedaço de piada repetida e mastigada...


Mas, falando de yaoísmos, é realmente hilário que o livro de estreia do Sherlock seja justamente um dos que tem mais ho-yay de todos os livros canônicos. Sério, é praticamente uma erva-dos-gatos pra quem gosta de shippar o Watson com o Sherlock, por mais que essa não tenha sido a intenção do autor. Para Sir Arthur Conan Doyle, a dupla está, com certeza, mais para Dom Quixote e Sancho Pança do que qualquer outra coisa. Sabe, aquela amizade fiel, pela qual um camarada está pronto para morrer pelo outro? Então, o que temos aqui é o começo de uma amizade dessas.

E antes que me perguntem nos comentários, digamos que deixo a minha opinião bem clara sobre o que eu penso a respeito disso:


 
Seus lindos!




Sendo assim, vamos à história!

 
Let them come!



É 1878 e o Dr. John H. Watson, um ex-médico do exército inglês apresenta suas reminiscências voltando de uma guerra no Afeganistão. Sem amigos ou parentes que o pudessem recebê-lo na volta pra casa, Watson procura um muquifo onde possa descansar as costas em Londres, onde segundo ele, "todos os vagabundos e ociosos do Império são irresistivelmente drenados.". Lá, ele encontra um colega que lhe indica o apê de um tal Sherlock Holmes, que procura alguém para partilhar os custos do aluguel. No entanto, o amigo o adverte: 

"Holmes é um pouco científico demais para o meu gosto... Chega quase a ser desalmado. Eu poderia imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, veja bem, mas simplesmente movido por espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos.Para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo o tomaria com igual prontidão." Além disso, o homem também conta que já viu Sherlock dando bengaladas em cadáveres, para ver até quanto tempo ainda apresentavam marcas de agressões...

Deixado com uma ótima impressão do homem, Watson segue o amigo até o laboratório onde temos o histórico momento em que o doutor conhece aquele que será seu companheiro... de aventuras, entendeu? A lenda viva, o detetive mais famoso de todos os tempos...

 
Coloquei essa imagem, porque literalmente, só encontrava David Cumberbatch... Maldito seja o Tumblr!


E ele está coberto de emplastros, correndo e gritando com um tubo de ensaio nas mãos, comemorando uma descoberta com a qual ninguém se importa além dele mesmo:
 
"Encontrei um reagente que é precipitado pela hemoglobina, e por mais nada!"

Quanto a isso, Watson comenta: "Se tivesse encontrado uma mina de ouro, um deleite maior não poderia ser visto em seu semblante."

Acho que essa é uma das características mais simpáticas do Sherlock Holmes: Ele é tão entusiasmado em resolver mistérios quanto um nerd passeando por uma Comic Con. É o parque de diversões dele, e enquanto o personagem se diverte, e como leitores, nós também nos divertimos a cada passo da investigação.



Com certeza o rato da Disney mais lembrado depois do Mickey Mouse.


Então, eles são apresentados pelo colega de Watson e pra melhorar ainda mais sua primeira impressão, o detetive aperta-lhe a mão e comenta:

"Como vai? Pelo visto, esteve no Afeganistão."

Watson, é claro, fica pasmo e pergunta como ele poderia saber disso sem ser um grandessíssimo stalker. A reação de Holmes não podia ser mais pau no cu:

"Não importa." respondeu, com uma risadinha para consigo mesmo. "A questão agora é a hemoglobina. Percebe a importância desta minha descoberta, não é?" 

E ele prossegue explicando como a substância é capaz de diferenciar manchas de sangue envelhecidas de outras de ferrugem, lama ou frutas, o que mais pra frente, se torna importante. Ou seja, temos uma arma de Chekhov!


"Chamou?"

Pra aqueles que nunca acessaram o TV Tropes, arma de Chekhov, ou Checkhov's gun, é um dispositivo narrativo que diz: "Se uma arma aparece pendurada na parede, é porque em algum momento ela será usada.". Ou seja, é um elemento que aparece casualmente e que depois se revela essencial para a história. Tem esse nome porque foi dito por Anton Checkhov, um desses escritores russos muito fodas que eu nunca li.
...

Não me façam essa cara, eu já li Tolstoy pelo menos! Hunf!

Voltando ao ponto, Watson e Holmes combinam de morarem juntos... e não, não desse jeito. Como amigos, ok? Controle-se, sua yaoísta fã de Gravitation!  

E descobrem que tem muito mais coisas em comum do que poderiam supor, como por exemplo o fato de que ambos fumam quilos de tabaco forte e tem um temperamento mais introspectivo. Watson acabou de voltar de uma guerra e tem os nervos abalados, como ele mesmo explica, enquanto Holmes, por sua vez, revela: 

"Às vezes fico deprimido e passo dias a fio sem abrir a boca. Não deve pensar que estou amuado nessas ocasiões. Basta deixar-me em paz e logo volto ao normal."

Sério, me lembra aqueles posts de facebook: "Eu não estou de mal com você, é o meu jeito..." Hunf, incrível como quem posta essas coisas nunca é uma pessoa quieta, mas estou divagando de novo. Acho que peguei essa mania dos blogs que eu leio.



"Calma, eu juro que eu só estava me inspirando... Eu juro!"
          

Logo, eles marcam de se encontrarem no dia seguinte no apartamento que alugariam na Baker Street. Às sós novamente com seu colega, o doutor questiona:

"Como diabos ele soube que venho do Afeganistão?"
Meu companheiro abriu um sorriso enigmático. "Essa é justamente sua pequena peculiaridade." disse. "Muita gente gostaria de saber como ele descobre as coisas."

Hum, acho que eu tenho uma pista...


"Ok, Sra. Peregrine, já entendi. Bico fechado..."

Watson se despede do amigo, determinado a descobrir mais sobre seu novo conhecido.
E quando eu digo determinado, eu quero dizer é obcecado na verdade, e já, já vocês entenderão.

Do dia seguinte em diante, eles passam a co habitar, e Watson elabora um intrincado esquema de pesquisa e observação que poderia lhe render ao menos um "A" em um estudo de caso psicológico. Leiam bem:

"Holmes não era um homem de convívio difícil. Tinha modos tranquilos e hábitos regulares. Raramente estava de pé depois das dez horas da noite, e invariavelmente já tinha tomado seu desjejum e saído quando eu me levantava de manhã. Às vezes passava o dia no laboratório de química, às vezes nas salas de dissecação, e eventualmente em longas caminhadas, que pareciam levá-lo ao submundo da cidade. Nada podia superar sua energia quando dominado pelo impulso de trabalhar; vez por outra, porém, uma reação tomava conta dele, e passava dias a fio deitado no sofá da sala de estar, mal pronunciando uma palavra ou movendo um músculo, da manhã à noite. Nessas ocasiões, eu notava uma expressão tão sonhadora e aérea em seus olhos que poderia ter desconfiado que era viciado em algum narcótico, se a temperança e a correção de toda sua vida não proibissem semelhante ideia."

E o doutor continua sua dissertação a respeito do misterioso colega de apartamento, dessa vez falando sobre seus interesses e conhecimentos, ao que se surpreende:

"Sua ignorância era tão extraordinária quanto seu conhecimento. De literatura contemporânea, filosofia e política, parecia não saber praticamente nada. Quando lhe citei Thomas Carlyle, perguntou de maneira mais ingênua quem poderia ser e o que tinha feito." 

 
"Não fique triste, ele também mal sabe quem é Charles Dickens!"


"Minha surpresa chegou ao clímax" afirma o doutor, "quando descobri por acaso que ele ignorava a teoria copernicana e a composição do Sistema Solar. Que um ser-humano civilizado neste século XIX não estivesse ciente de que a Terra gira em redor do Sol pareceu-me um fato que, de tão extraordinário, era quase inacreditável."
      

"O que está havendo com você, Holmes? Você costumava ser um bom estudante..."


Ao que Holmes apenas revira os olhos, explicando:



"Considero que o cérebro de um homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de encher com os móveis que escolhemos. Um tolo recolhe todo tipo de trastes com que se depara, de modo que o conhecimento que lhe poderia ser útil, fica atravancado [...] O trabalhador competente, porém, é cuidadoso com relação ao que leva ao sótão-cérebro."


Watson protesta:  "Mas o Sistema Solar!"

"Que significa ele para mim?" interrompeu, impaciente. "Você diz que giramos em torno do Sol. Se girássemos em torno da Lua, isso não faria a mínima diferença para mim ou para o meu trabalho."

ZIIING! Temos a primeira DR da nossa dupla! 


"Foda-se o Sistema Solar, Watson! O que eu quero é você, digo, er... O que era mesmo aquilo sobre o Sistema Solar?"

Após mais algumas anotações detalhadas que fariam corar um fã obsessivo, Holmes finalmente abre o jogo e apresenta seu ganha-pão:

"Tenho uma profissão e suponho que sou o único a exercê-la. Sou um detetive consultor, se é capaz de entender isto. Aqui em Londres temos um punhado de detetives do governo e detetives privados.Quando esses sujeitos se veem numa enrascada, eles me procuram, e consigo pô-los na pista certa. [...] A observação é minha segunda natureza."

Impressionado, Watson ainda ouve do detetive a explicação sobre o modo como este foi capaz de deduzir que ele vinha do Afeganistão, e o médico não poderia estar mais pasmo.
Admirado, ele comenta: "Você me lembra Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que existissem pessoas assim na vida real." A reação de Holmes ao ouvir tal comparação é impagável:

"Sherlock Holmes levantou-se e acendeu seu cachimbo. "Sem dúvida acha que está me elogiando ao me comparar com Dupin," observou. "Em minha opinião, porém, Dupin era um sujeito muito inferior. Aquele truque de se intrometer nos pensamentos com um comentário oportuno depois de um quarto de hora de silêncio é por demais aparatoso e superficial. Ele tinha algum talento analítico, sem dúvida; mas não era de maneira alguma o fenômeno que Poe parecia imaginar."

"Eh, nevermore..."
Diante de tais insultos à outros detetives fictícios, Watson deduz brilhantemente: "Esse sujeito pode ser inteligente, mas é sem dúvida muito convencido."

Antes que Sherlock critique Miss Marple, Hercule Poirot e trucide Nancy Drew, Watson vê um sujeito cruzar a rua Baker, com um pedido de ajuda de um dos homens da Scotland Yard, Thomas Gregson. A carta narra a descoberta de uma cena de crime numa casa, onde o corpo de um ricaço fora encontrado, aparentemente, sem sinais de violência, apesar do abundante sangue respingado nas paredes. Ao que parece, o homem portava dinheiro e objetos de valor, mas nada foi-lhe roubado. Tais circunstâncias deixam os detetives perplexos, mas nosso Xeroque Rolmes não se impressiona:

"Gregson é o homem mais astuto da Scotland Yard", observou meu amigo; "ele e Lestrade são a nata de um bando de incompetentes. São ambos rápidos e vigorosos, mas convencionais, escandalosamente convencionais. Além disso, têm aversão um pelo outro e são ciumentos como um par de beldades profissionais. Esse caso será divertido se ambos estiverem na pista." 

Eu tenho certeza que as yaoístas extraíram o máximo que podiam desse parágrafo.

Assim, o detetive decide que vai investigar:
"Pegue o seu chapéu", disse-me.
"Quer que eu vá junto?"
"Quero, se não tiver coisa melhor a fazer."



E assim começa o primeiro mistério do resto das vidas deles... S'imbora!

Nossos herois partem até o local do crime, o nº 3 da Lauriston Gardens, cujo aspecto Watson qualifica de "agourento e ameaçador". Para completar, o clima é chuvoso como sempre e a terra enlameada. Assim que descem do transporte, veem um policial robusto tomando conta da entrada, mas ao contrário do que o médico imaginava, Sherlock não imediatamente na casa, vasculhando primeiro seus arredores, calçadas, as casas do outro lado da rua. Só então ele parte para o caminho da casa, com os olhos ainda voltados para o chão e com um sorriso astuto que intriga Watson. Então Holmes se volta para o homem na frente da casa, que é Gregson na verdade. Ele e o colega Lestrade levam os dois até o interior da casa e a vítima, estendida no chão:





"Era uma sala grande e quadrada, que parecia ainda maior em razão da ausência de mobília. Um papel vistoso e vulgar adornava as paredes, mas tinha manchas de mofo em vários lugares e, aqui e ali, grandes tiras haviam se despregado e pendiam, expondo o reboco amarelado. Em frente à porta havia uma lareira espalhafatosa, encimada por um aparador que imitava mármore branco. Num canto deste via-se uma vela de cera vermelha. A janela solitária estava tão suja que a luminosidade era tênue e difusa, conferindo a tudo uma cor cinzenta e fosca, o que era intensificado pela grossa camada de poeira que forrava todo o aposento. 

Só depois observei todos esses detalhes. No primeiro instante minha atenção concentrou-se na única e soturna figura que jazia imóvel, estendida sobre as tábuas, olhos vazios e cegos fixados no teto descorado. Era um homem de cerca de quarenta e três ou quarenta e quatro anos, com cabelo preto anelado e uma barbicha espetada. Vestia uma pesada sobrecasaca de casimira e colete, com calças claras e colarinho e punhos imaculados. Ao seu lado, no assoalho, via-se uma cartola, bem escovada e elegante. Tinha as mãos cerradas e os braços abertos, ao passo que as pernas estavam entrelaçadas, como se tivesse enfrentado uma dolorosa luta com a morte. Em seu semblante rígido havia uma expressão de horror, e, segundo me pareceu, de ódio, como eu nunca vira em traços humanos." 
 
Sherlock se abaixa para examinar o corpo e pergunta se não havia mesmo nenhum ferimento, apontando para o sangue salpicado por toda parte. Os policiais negam com vêemencia, então ele conclui que o sangue pertence a um segundo indivíduo, presumivelmente o assassino. Para se assegurar, o detetive examina o corpo, desabotoando suas roupas, cheira os lábios do morto e por último examina a sola de suas botas. Então decreta: "Podem levá-lo para o necrotério agora".

Os homens aparecem para carregar o cadáver e ao erguê-lo, um anel cai rolando pelo assoalho e Lestrade o agarra, exclamando: "Uma mulher esteve aqui. É uma aliança de mulher."


"Ou isso, ou o MC Guimê resolveu fazer uma aparição em Londres, vai saber..."
Os detetives da Scotland Yard se mostram mais uma vez intrigados e desanimados, e Holmes lhes mostra porque é o nome dele que está na capa do livro e pergunta sobre o conteúdo dos bolsos do defunto. Eles mostram a carteira e os documentos com o nome de um tal Enoch J. Drebber, de Cleveland, um anel de ouro com emblema maçônico e duas cartas endereçadas a Joseph Stangerson, o secretário dele, ao que eles concluem que o homem estava para sair de Londres no dia seguinte.

Então, Lestrade aparece esfregando as mãos empolgado para lhes apontar um detalhe passado despercebido até aí: ele risca um fósforo e mostra num canto da parede onde a pintura descascara: "Num espaço nu, via-se uma única palavra garatujada em letras vermelho-sangue: RACHE"




Diante de tal evidência, Lestrade rejubila mais que o inspetor Zenigata ao quase prender o Lupin III pela quinquagésima vez. Como é evidente, esse personagem só serve pra apontar uma pista importante e depois falhar miseravelmente na hora interpretá-la e abrir caminho para o protagonista. Olha o que o pobre coitado diz: 

"A pessoa ia escrever o nome feminino Rachel, mas foi interrompida antes de poder terminar. Tomem nota das minhas palavras: quando este caso for esclarecido, verão que uma mulher chamada Rachel tem alguma coisa a ver com ele."

...

Sério, eu não sei o que dizer, eu sinto muita pena do Lestrade. Em todos os livros que eu li do Sherlock ele está sempre lá, tentando e falhando. 

Sherlock então começa a rir e tira uma fita métrica do bolso, pondo-se a medir a sala de ponta a ponta, examinando o chão durante vinte freaking minutos. Ele para, recolhendo um montinho de cinzas de um canto, guardando-o num envelope e com a lupa, examina as letras grafadas na parede. Com a solução, ele confirma que sim, elas foram escritas com sangue. Por fim, ele pede o endereço do policial que encontrou o corpo, convidando Watson para ir com ele até lá e antes de sair, fornece sua visão do que aconteceu aos dois patetas:





"Um assassinato foi cometido, e o assassino foi um homem. Ele tinha mais de um metro e oitenta de altura, estava na flor da idade, usava botinas grosseiras de bico quadrado e fumava um charuto Trichinopoli. Veio pra cá com sua vítima num fiacre de quatro rodas, puxado por um cavalo com três ferraduras velhas e uma nova na pata dianteira direita. Com toda probabilidade, o assassino tinha o rosto corado e unhas notavelmente compridas na mão direita. Estas são apenas algumas indicações, mas podem ajudá-los."

Os dois coitados (e provavelmente Watson também) se entreolham com um sorriso incrédulo, e Lestrade pergunta como o homem foi assassinado então.  

"Veneno", respondeu Sherlock Holmes laconicamente e foi saindo. "Mais uma coisa, Lestrade", disse dando meia-volta junto à porta: "Rache é 'vingança' em alemão; por isso, não perca seu tempo procurando nenhuma Rachel."

 
"Sorry, Lady, wrong call."
"..."
Fico imaginando o que Sherlock não faria com a tecnologia disponível nos dias de hoje. Provavelmente resolveria os mistérios em cinco minutos, mas estou teorizando.

Holmes e Watson se retiram e vão até uma agência telegráfica, de onde o detetive manda um telegrama longo, sem dizer pra quem. Depois os dois se põe ao encontro de John Rance, o primeiro policial a encontrar o corpo. No caminho, Watson debate sobre o caso:

"Quanto mais se pensa sobre isso, mais misterioso fica. Por que esses dois homens, se é que eram dois homens, entraram numa casa vazia? Que foi feito do cocheiro que os levou? Como pode um homem obrigar o outro a tomar veneno? De onde veio tanto sangue? Qual era o objetivo do assassinato, já que não houve roubo? Como a aliança de mulher foi parar lá? Acima de tudo, por que o segundo homem haveria de escrever a palavra Rache antes de se safar? Confesso não ver nenhuma maneira de conciliar os fatos."

Frente ao enigma, Sherlock sorri, respondendo: "Você resumiu as dificuldades da situação clara e sucintamente. Muita coisa ainda está obscura, embora eu já tenha uma opinião inteiramente formada sobre os fatos principais.Quanto à descoberta do pobre Lestrade, aquilo foi simplesmente um ardil destinado a despistar a polícia, sugerindo socialismo e sociedades secretas." E ele diz a seguir, desfazendo-se de suas habilidades: "Não lhe direi muito mais do caso, doutor. [...] se eu lhe mostrar demais do meu método de trabalho, chegará à conclusão de que, afinal, não passo de um sujeito comum." 

Eis que Watson reage:

" "Nunca", respondi; "ninguém tornará a detecção tão próxima de uma ciência exata como você fez."

Meu companheiro corou de prazer ante as minhas palavras e a maneira sincera como eu as pronunciara. Eu já observara que era tão sensível à lisonja a respeito de sua arte quanto uma moça podia ser de sua beleza."

 
"Hum... Significa."
 

A seguir, os dois param pra falar com o policial que fazia a ronda na noite do crime. Após se assustar com a precisão de detalhes que Sherlock lhe apresenta, o sujeito conta tudo o que viu, narrando que avistara a vela acesa na casa abandonada. Atemorizado, ele caminhou para dentro, encontrando o cadáver e correu de volta ao portão, tocando o apito. Logo, mais três colegas apareceram. Holmes então indaga se a rua estava vazia naquele momento, e o policial faz um comentário revelador: "Se formos contar com quem podia ser de alguma valia. [...] Já vi muito bêbado nessa vida, mas nunca alguém tão borracho como aquele sujeito.Ele estava no portão quando eu saí, encostado na grade e cantando a plenos pulmões [...]"

O detetive o pressiona, e John Rance confirma que o homem era "comprido, de cara vermelha."

Após contar tudo, Holmes lhe oferece uma pequena gratificação e sai praguejando contra o homem por ter deixado o suspeito escapar. Watson questiona então qual motivo levaria o suspeito a retornar a cena do crime tão rápido, e ele responde que o anel deve ser o motivo.

No dia seguinte, Holmes aproveita a pouca atenção aos detalhes que seus colegas detetives tiveram ao falar do caso nos jornais e coloca o anel num anúncio de achados e perdidos, comentando. "Nosso amigo corado das biqueiras quadradas. Se não vier em pessoa, mandará um cúmplice." 


Como imaginado, ao invés do suspeito, uma velhinha aparece respondendo ao anúncio.   
 

A velha se apresenta como mãe da dona do anel e diz que a filha o perdeu indo ao circo. Sherlock a interrompe falando que não há nenhum circo próximo da região e a velhota se explica dizendo que esse é o endereço delas.
Sem muitas alternativas, Watson vê o sinal que o detetive lhe faz e entrega o anel. A idosa lhes agradece e sai. Assim que a vê na rua, Sherlock se prepara: "Vou segui-la", disse, afobado; "ela deve ser uma cúmplice e vai me levar até ele. Espere por mim."

Watson faz como pedido e aguarda. Horas depois, o detetive retorna, visivelmente frustrado: "Não gostaria que os homens da Scotland Yard soubessem disso por nada neste mundo", exclamou, deixando-se cair na sua poltrona; "eu caçoei tanto deles que nunca mais parariam de falar nisso."

Então ele explica que seguiu a idosa e, após algum tempo, a velhinha parou, parecendo sentir dor nos pés e chamou uma carruagem. Após entrar nela, Sherlock cautelosamente se empoleirou atrás do táxi e seguiu, quando a uma certa altura, o cocheiro parou e então Holmes percebeu que a velhinha tinha desaparecido dali sem que nenhum deles a vissem.  
Watson exclama: "Você não está querendo dizer que aquela velhota trôpega e frágil foi capaz de sair do carro em movimento, sem que nem você nem o cocheiro a vissem?"

"Velhotas fomos nós de cairmos nessa esparrela! Devia ser um rapaz, aliás bastante vigoroso, além de um ator incomparável. O disfarce foi inimitável. Ele percebeu que estava sendo seguido, sem dúvida, e usou esse recurso para escapulir. Isso mostra que o homem que procuramos não está sozinho como eu imaginava, mas tem amigos dispostos a correr algum risco por ele."

No dia seguinte, enquanto eles leem nos jornais a repercussão do caso quando ouvem passos pelo apartamento:
"É a divisão Baker Street da força policial de detetives." disse meu companheiro [...] e enquanto ele falava a sala foi invadida por meia dúzia dos mais sujos e esfarrapados moleques de rua que eu já pusera os olhos.
"Sen-tido!" bradou Holmes com energia, e os seis malandrinhos sujos perfilaram-se como estatuetas indecorosas."

Após assistir Holmes perguntar sobre algo que eles respondem não terem conseguido encontrar, Watson espera o detetive dar uma pequena recompensa a eles, com a ordem de voltarem com alguma informação da próxima vez. Ele explica ao doutor que os garotos são informantes, mas não tem muito mais tempo para explicações, pois Gregson, da Scotland Yard, aparece com más notícias para Sherlock: "Dê-me os parabéns! Tornei a coisa toda clara como o dia."
    
Com quase tanta eficiência quanto o pessoal da Loucademia de Polícia, Gregson conta como chegou às suas conclusões e mandou prender um marinheiro, filho da senhoria de Enoch Drebber. Segundo ele, o homem era um bêbado pervertido que assediara a filha da senhoria. O irmão dela ao saber disso, lhe deu uma surra em plena rua. Tal teoria faz Sherlock soltar um suspiro de alívio: "Realmente, Gregson, você está fazendo progressos. Ainda será alguém!"

Pouco depois chega Lestrade, com a notícia de que Mr. Stangerson, o secretário de Drebber, foi encontrado morto em seu quarto na pensão, com a palavra Rache escrita sobre ele.







A coisa fica séria e Sherlock vê que não deve mais enrolar, ou pode haver uma próxima vítima.Como o suspeito de Gregson claramente não é o assassino, pois se encontrava preso, resta a eles trabalharem com as pistas fornecidas por Lestrade, como a descrição fornecida por um funcionário do hotel de um sujeito que teria passado por ali, descrição essa que bate exatamente com a imaginada por Holmes, que pergunta, exaltado:
"E não encontraram nada no quarto que pudesse fornecer uma pista do assassino?"

Ao que Lestrade responde:
"[...] havia um copo d'água na mesa, e no peitoril da janela uma caixinha ordinária de unguento contendo duas pílulas."   

Sherlock comemora com um pulo da cadeira, pois o quebra-cabeças já se completou em sua mente. A seguir, ele pede as pílulas que Lestrade guardou consigo e demonstra sua teoria num pobre cachorrinho, ai meu deus...

Era um cachorro velhinho e doente que precisava ser posto pra dormir, mas mesmo assim....argh!


  


OK, estou melhor... 

Depois desse momento Marley e eu, os quatro homens brancos/cis/provavelmentehéteros nossos heróis comprovam que uma das pílulas era inofensiva e a outra era um potente veneno. Lestrade e Gregson reconhecem as lesmas que são e pedem ajuda a Sherlock, que por sua vez afirma com convicção saber o nome do culpado, mas que não o revelará para não por em risco seus próprios arranjos.

Logo, Wiggins, um dos garotos de rua a serviço do detetive aparece anunciando a condução pedida por Holmes, que se ocupa em mostrar um modelo prático de algemas que se fecham rapidamente num clique.  "O cocheiro pode perfeitamente me ajudar com minhas caixas. Peça-lhe para subir, Wiggins."

O sujeito entra e se prepara para ajudar Holmes com uma mala quando, rá! Gotcha!


 

"Cavalheiros", exclamou Holmes, os olhos faiscando, "permitam que lhes apresente Mr. Jefferson Hope, o assassino de Enoch Drebber e de Joseph Stangerson.", anuncia, pouco depois de tê-lo algemado.

O homem, muito maior que eles, resiste à prisão, mas os quatro juntos conseguem subjugá-lo.Por fim, Holmes se dispõe a elucidar o mistério e...

E começa a Parte II, chamada "A terra dos Santos".

Vou confessar uma coisa: eu pulei fortemente essa parte do livro.

Deixa eu explicar: a segunda parte, diferente da primeira que é narrada por Watson, essa parte é toda em terceira pessoa e se passa em Utah, nos Estados Unidos.Quero dizer, é uma quebra muito grande de narrador e lugar, eu realmente não vejo a necessidade disso...

Pois bem, resumindo, nessa parte nós ficamos conhecendo a história de John Ferrier e a garotinha Lucy, dois sobreviventes de um grupo de pioneiros que devem ter pego o caminho errado em algum lugar em Albuquerque e como resultado desabaram de fome e sede pelo deserto. Num trecho comovente, sabendo que ambos estão pelas últimas, John acalma a menina dizendo que logo estarão num lugar melhor. Eis que eles são salvos por mórmons...
Ou um grupo que se parece com mórmons. Sério, nem o próprio Conan Doyle tinha muita certeza das coisas que escreveu sobre os mórmons, quem sou eu então pra saber?

De qualquer forma, eles são acolhidos por essa seita, com a condição de jamais saírem dela. Solidariedade, a gente se vê por aí.

O velho John Ferrier não vê problema nisso e se junta a eles, adotando a pequena Lucy, que cresce cada dia mais linda no vilarejo. Logo, a moça conhece um rapaz chamado Jefferson Hope, aka o cara que o Sherlock algemou, e eles se apaixonam.O problema é que os filhos dos chefões da seita também estão de olho na garota, de modo que eles a pressionam a escolher um deles. 
No fim das contas, John tenta salvar a filha fugindo com ela, mas a fuga fracassa, John é morto pelos capangas dos pastores mórmons, Lucy é forçada a se casar com Drebber e acaba morrendo também, pouco depois. Eis que Jeffeson Hope aparece, jurando vingança...

E voltamos para os dias de hoje  o instante em que Sherlock explica como descobriu a identidade do assassino: "Tendo deixado a casa, tratei de fazer o que Gregson negligenciara. Telegrafei para o chefe de polícia de Cleveland, limitando minhas indagações às cricunstâncias associadas ao casamento de Enoch Drebber. A resposta foi conclusiva: Drebber já havia pedido proteção da lei contra um rival num caso de amor, chamado Jefferson Hope, e esse mesmo Hope encontrava-se presente na Europa.[...] Eu já concluíra por força de reflexão, que o homem que caminhara em direção à casa com Drebber não era outro senão aquele que conduzira o fiacre.As marcas na estrada mostravam-me que o cavalo havia vagado de uma maneira impossível se houvesse alguém tomando conta dele. Nesse caso, onde poderia estar o cocheiro, senão dentro da casa?"

Então ele dá permissão ao assassino de confessar o motivo de seus feitos horrendos, porém compreensíveis:

 
"Essa moça de que falei ia se casar comigo vinte anos atrás. Foi forçada a se casar com aquele mesmo Drebber, o que a matou de desgosto. Tirei a aliança do seu dedo no caixão e jurei que ele morreria olhando para aquele mesmo anel, e que seus últimos pensamentos seriam sobre o crime pelo qual era punido. [...] Se eu morrer amanhã, como é muito provável, morro sabendo que meu trabalho neste mundo está feito, e bem-feito. Eles morreram, e pelas minhas mãos. Nada mais tenho a esperar ou desejar."

Ele explica que apesar de querer se vingar, não queria simplesmente matar os homens. Então ofereceu as pílulas à ambos em cada ocasião, uma com o veneno e a outra sem, para que Deus decidisse o que aconteceria. O sangue na cena do crime era proveniente de veias que romperam por causa de um aneurisma, fazendo-o sangrar abundantemente pelo nariz devido à emoção e deixando-o com poucos dias de vida. Sua ideia era despistar a polícia com as palavras escritas nas paredes, por se assemelharem a um caso de seitas secretas. Por último, o trabalho como cocheiro servira para perseguir os cavalheiros por todas Londres sem parecer suspeito.

Quanto ao cúmplice que lhe ajudou se disfarçando de velha, Hope se recusa a dar-lhe o nome, sendo assim conduzido para a prisão.

No dia seguinte, Watson e Holmes recebem a notícia de que o aneurisma do homem se rompera na noite de sua captura, e que ele havia sido encontrado em sua cela, "com um plácido sorriso em seu rosto [...]"

Sherlock então, comenta: "Gregson e Lestrade ficarão furiosos com sua morte. Que será da grande publicidade que esperavam?"

"A meu ver, eles não tiveram muito a ver com a captura dele", respondi.
"O que fazemos neste mundo não importa." retrucou meu companheiro amargamente. "A questão é o que levamos as pessoas a acreditar que fizemos. Não faz mal.", continuou num tom mais animado, após uma pausa: "Eu não teria perdido essa investigação por nada. [...] Eu não lhe disse quando começamos?" exclamou Sherlock Holmes, rindo. "Esse é o resultado de nosso estudo em vermelho: proporcionar-lhes essa homenagem."

Watson não se dá por satisfeito e proclama, quase que numa profecia: "Tenho todos os fatos em meu diário, e o público haverá de conhecê-los."

E assim aconteceu.



Essa é uma das estátuas do Sherlock Holmes que existem espalhadas por aí. A da foto no caso, fica em Londres, próximo de onde seria a fictícia Baker Street, onde também se localiza o museu em homenagem aos personagens de Sir Arthur Conan Doyle. Acredito que nem o próprio imaginava o sucesso que seu personagem teria, tanto que ele cogitou matá-lo, pois segundo ele, "tomava seu tempo de coisas melhores.".

Sim, coisas melhores, como colagens com fadas. Hãhã...



 
Felizmente, ele não cumpriu essa decisão e tivemos os quatro livros e os inúmeros contos que empolgaram e continuarão empolgando pessoas por muitas gerações.



Minhas impressões:

Diferente do que vocês possam ter imaginado, esse não foi o primeiro livro do Sherlock Holmes que eu li (esse seria O cão dos Baskervilles). E agora eu posso dizer que definitivamente não é o meu preferido.

Não que tenha sido ruim, eu ri em muitas partes (mais por um humor não-intencional do que por qualquer outra coisa) mas eu não sei explicar direito por que esse livro não me cativou. Acredito que tenha sido pela falta de um vilão. Os únicos que poderiam ser chamados assim eram o Drebber e o sócio dele e os dois morrem antes que possamos vê-los fazendo qualquer vilania. Quero dizer, o criminoso não é o vilão na história, apenas um "adversário" do Sherlock Holmes, e o leitor não consegue antipatizar o bastante pra comemorar sua prisão. Fica a impressão de que o Sherlock não precisava nem ter interferido, pois tudo iria correr conforme aconteceu.
Fora isso, considero um livro importante pra quem se interessa por literatura policial, ou mesmo quem gosta de livros rápidos e curtinhos de mistério é uma boa pedida.

Ah, e pra quem curte um yaoi, acho que não preciso dizer mais nada, preciso?





No mês que vem, teremos a resenha de um livro clássico, que foi banido e depois adaptado para filme na década de 40. De pista, vou deixar vocês pensando com uma imagem e essa fala sensacional:



"[...] sentiu um calor e disse com a voz trêmula: Há um outro acima de nós... acima de todos nós e acima Dele."

Até lá!