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quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Os muitos títulos de Animal Farm, do George Orwell


 

Após comer muito panetone e outros quitutes de fim de ano, cá estou com mais um artigo pra começarmos bem este 2021. Não que eu realmente espere divertir alguém numa época como essa com minhas piadas sem graça, é muita responsabilidade pra uma pessoa só. O que eu quero do ano 2021 é apenas isso, que seja um ano. Porque 2020 foram duzentos anos em um só e eu não tenho certeza se aguento.

Enquanto aguardamos a vacina chegar no Brasil e assistimos os Estados Unidos sofrerem ataques antidemocráticos de supremacistas brancos do mesmo jeito que eles sempre insuflaram em outras regiões e países ao redor do mundo sob pretexto de levar a "liberdade e democracia" (a ironia), as editoras nacionais aproveitaram que as obras de George Orwell acabam de entrar em domínio público este mês e fizeram a farra. Sério, são tantas edições inundando o mercado que eu tive de olhar para a minha estante pra ter certeza de que não tinha uma dessas no lugar do meu Guia de horóscopo do João Bidu.

Não que eu acredite em horóscopo, é claro. Sou sagitariana demais pra isso.




Enfim, dessa avalanche de livros do Jorginho surgiu a discussão sobre a tradução do título de uma de suas obras de maior sucesso: Animal Farm, que ficou conhecida por aqui como "A revolução dos bichos".



Se você não conhece o livro e teve a sorte de não ter assistido aquele filme de 1999 que passou no SBT uma vez, aqui vai uma pequena sinopse:

"Cansados dos maus-tratos e abusos dos humanos, os animais da Fazenda do Solar decidem tomar o poder das mãos do sr. Jones. Com um idealismo inflamado e repleto de frases de ordem, eles tentam criar um paraíso de progresso, justiça e igualdade, mas são impedidos por uma coisa: a ambição do poder. 

Esse é o palco para uma das fábulas satíricas mais importantes da modernidade, um conto de fadas para adultos que registra a transformação de uma revolução popular em totalitarismo. Contudo, a narrativa é complexa o suficiente para evocar a rivalidade entre Stálin e Trótski, bem como o conflito entre "o socialismo num só país" e a revolução mundial. 

Publicado pela primeira vez em 1945 depois de ser rejeitado por diversas editoras, A Fazenda dos Animais é uma crítica ferrenha à ditadura stalinista e mostra como um movimento pode ir se degenerando gradualmente, caindo em contradição, formando hierarquias e, por fim, estabelecendo uma ditadura." (Companhia das Letras, 2020).


"O pai compra esse filme, Rogerinho, pensando que é o Babe, o porquinho, mas na verdade é um monte de animal se matando! Renanzinho não dorme tem três semanas já! Eu até amarrei um porco de verdade no pé da cama que é pra ajudar ele a pegar no sono."
"Fez bem, Renan."


Agora que estamos mais inteirados sobre a história do livro, podemos voltar a falar sobre a grande treta literária por trás dele, que não é apenas o modo como o autor é esculachado em certos grupos do face e usado como meme, mas sim e mais importante, o título da obra. Acontece que, como a maioria deve ter percebido, entre o título original e o traduzido houve uma adaptação (ou seria, distorção?) que foi feita por um militar com o objetivo claro de torná-lo propaganda ideológica anticomunista, exatamente como o livro acabou sendo usado nos Estados Unidos e demais países durante a Guerra-Fria.


Qual, criança, ranhenta? Um futuro onde a Alemanha Nazista é derrotada?


"Por aqui, quem planejou e bancou a primeira edição do romance foi o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPES, entidade responsável por disseminar a ideologia que levou ao golpe civil-militar de 1964. A ação com o livro foi impulsionada "menos por um critério comercial ou mesmo literário do que por sua aura de arma psicológica anticomunista", explica Marcelo. Publicado pela editora Globo com tradução de Heitor de Aquino Ferreira, em 1964 "Animal Farm" chegou aos leitores brasileiros com o nome de "A Revolução dos Bichos"." (link)

Além de não ter nenhuma vez a palavra "revolução" no livro, mas sim "rebellion", que seria mais próximo de rebelião, por exemplo, o título foi pensado claramente para enfatizar a relação entre a sátira ao comunismo de Stalin e o socialismo como um todo. Como o tradutor enfatiza no texto mais adiante, tira-se o foco do resultado da rebelião, que é "A fazenda dos animais" e o coloca no que o teria "causado", que é a revolta dos bichos. Parece que não tem nada demais nisso, mas é um jeito sutil de dizer "olha como o comunismo é feio, olha como não deu certo porque revoluções nunca dão certo", coisa que o autor jamais disse no livro e nem fora dele. Fica explícito como na época o tradutor forçou sua própria visão das coisas no título e provavelmente ao longo do livro.




"Mas Jurássica, George Orwell enfrentou muita resistência de editores para que publicassem seu livro em 1945, tinham medo de ofender Stalin!"


Sim, essa história é sempre lembrada pela direita Liberal e conservadora pra causar comoção sobre uma possível "censura", mas acho que uma coisa importante a se entender aqui é o contexto histórico. A segunda guerra tinha acabado de acabar, digamos assim, e o exército vermelho foi essencial para que os aliados não tivessem perdas maiores ou mesmo uma derrota nas mãos de Hitler. Por mais certas que fossem as opiniões de Orwell sobre Stalin, em 1944 simplesmente não dava pra Inglaterra cuspir no prato em que tinha comido e falar mal de sua, então, aliada União Soviética. (link

No entanto, o ano seguinte parece ter sido a época perfeita para isso, visto que tão logo a obra dele foi publicada por lá, tornou-se um enorme sucesso graças à vontade dos governos liberais, em especial dos Estados Unidos, de usá-la como propaganda anti-comuna na Guerra-Fria.

"Ain, mas A revolução dos bichos é um título mais chamativo que A fazenda dos animais, você não acha?"

Claro que é, mas pra dizer a verdade, acho que a essa altura do campeonato qualquer coisa com o nome GEORGE ORWELL escrita na capa vende como água. Porque anticomunismo sempre vende.




A questão é que, por mais que Orwell tenha criticado fortemente o regime ditatorial de Stalin, ele próprio era um socialista e tinha lutado na Guerra civil espanhola contra as forças fascistas de Hitler e Mussolini. Disse ele, em um prefácio da edição ucraniana do livro em 1947:

"Devemos lembrar que a Inglaterra não é completamente democrática. Também é um país capitalista onde existem grandes privilégios de classe e (ainda hoje, mesmo depois que a guerra nos fez tender à igualdade) acentuadas diferenças econômicas", registra. "Os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos", continua, para depois explicar: "Decidi analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais. Para eles, claro, o conceito de luta de classes entre os seres humanos era pura ilusão, pois sempre que fosse necessário explorar os animais os seres humanos se uniam contra eles: a verdadeira luta se dava entre os bichos e as pessoas." (link)




Como era de se esperar, esse lado do autor acabou totalmente obscurecido pelos que interpretaram de sua obra, pois uma crítica a um governo socialista terminou sendo usada como crítica a todo e qualquer socialismo. E qual o problema disso, poderia alguém perguntar, se os livros estão aí é para serem interpretados pelo leitor e não de acordo com a intenção do autor e blablablá, morte do autor, etc. Sim, isso é verdade. Mas se perguntar quem interpreta e por que o faz dessa maneira específica se torna importante quando muitas vezes não se tem nem sequer uma crítica com argumentos, mas simplesmente ataques com frases feitas, teorias conspiracionistas e ódio cego ao fantasma do comunismo.


A ironia dessa imagem atualmente...


Acho que, de certa forma, a esquerda também é parcialmente culpada por não ter se apoderado da obra de Orwell nesse sentido. Pois as críticas do autor apesar de terem sido direcionadas a esse contexto específico da Rússia pós-revolução, também falam contra todo e qualquer totalitarismo e fascismo. Na figura dos animais, Orwell conseguiu condensar o que ele enxergou de errado nesses regimes por boa parte de sua vida: o poder exercido pela tirania, por mentiras e pelo espírito de fanatismo que se instaura numa população geralmente à mercê de crises financeiras e outros problemas sociais.



O fascismo prolifera nesses ambientes de instabilidade e os resultados são os que estamos vendo atualmente no Brasil e ao redor do mundo. Ou será que já nos esquecemos do jornalista Omar Kashoggi, brutalmente assassinado e esquartejado vivo pela ditadura da Arábia Saudita? Ou de quando Donald Trump tentou banir o Tik Tok por pura xenofobia, visto que diversos outros apps (facebook e google, por exemplo) também coletam dados de usuários e inclusive lucram com eles? 

Sem falar, é claro, do desprezo generalizado pela pandemia e suas vítimas, algo que praticamente todos os políticos da extrema direita parecem nutrir.


Então, minha recomendação é leiam Animal Farm, qualquer que seja sua opinião no espectro político. E a propósito, 1984 também, pois são obras que é redundante dizer o quanto são  atemporais. Mas sempre mantendo em mente que não existem livros imparciais e não existem traduções que o sejam. É preciso resgatar a história do autor e relembrá-la, antes que ela seja obliterada pela conveniência de grupos que não se importam com a verdade e muito menos com a diversidade de opiniões a pretexto de salvar o país do bode expiatório da vez, o único animal que faltou a Orwell prever em seu livro. 



Tem muitas edições pra escolher entre as capas mais bonitas, mas se alguém estiver interessado em um ebook mais em conta, sugiro essa edição  traduzida por uma amiga minha (oi, Ellen!) que está a R$ 1,99  na Amazon. Apesar de ter mantido o título mais conhecido, ela escreveu um bom prefácio explicando a problemática por trás dele:

O shade, meu pai...

É isso, até o próximo artigo.



 


Referências:

Nova edição: por que 'A Revolução dos Bichos' virou 'A Fazenda dos Animais'

Clássico da literatura mundial ganha nova edição

A Fazenda dos Animais pela companhia das letras

A Revolução dos Bichos, edição traduzida por Ellen Vita na Amazon