"O sono da razão produz monstros" de Goya |
...
Ok, depois de sumir por vários
meses e reaparecer aqui com um artigo cujo título poderia ser de um filme da
Xuxa dos anos 80, acho melhor colocar as coisas em seu devido contexto: no mês
passado, a Tatiana Feltrin, do canal Tiny Little Things e provavelmente a
booktuber mais famosa do Youtuber brasileiro, postou um vídeo anunciando sua
pretensão de resenhar o livro "O Imbecil Coletivo", escrito pelo
autointitulado filósofo, Olavo de Carvalho.
Quem tem algum tempo de
convivência internética sabe que o Olavo é uma figura controversa, pra dizer o
mínimo. Independente de posições políticas, a maioria das pessoas parece
concordar que o filósofo e astrólogo que insiste em ser chamado de professor
(apesar de, aparentemente, nunca ter feito o magistério) é alguém bastante agressivo na
exposição e defesa de suas opiniões, e que costuma atacar pessoas que discordem
dele com palavras dignas de comentaristas do G1, além de divulgar ideias
bastante questionáveis, mas já vou entrar no assunto.
Não preciso dizer que, sendo a internet como ela é, logo depois do anúncio, o caldo entornou e fuzuê se formou: alguns seguidores da Tatiana começaram a fuçar as redes sociais dela e ao que parece, a youtuber seguia a Ana Caroline Campagnolo no Instagram. Pra quem não sabe, Caroline Campagnolo foi eleita deputada estadual de Santa Catarina pelo PSL e ficou famosa por incitar os alunos de um colégio a filmarem seus professores com o intuito de denunciar "doutrinação marxista" na sala de aula. O episódio gerou polêmica e críticas de pessoas que eu ninguém nunca imaginaria que se posicionassem a respeito:
Quando eu concordei com o Danilo Gentilli |
A partir desse ponto, muita gente deixou de assistir o canal, acusaram a youtuber de ser uma "bolsominion enrustida", dentre outras coisas menos elogiosas. E com o lançamento da resenha dela sobre o livro, a coisa só piorou. No vídeo, a booktuber se disse vítima de uma perseguição por parte de seus seguidores, e se disse decepcionada com as atitudes de pessoas que ela identificou como sendo "feministas", e que teria sido chamada de "vaca fascista". Pesquisando, eu não tenho como comprovar se foi mesmo desse jeito, porque aparentemente a booktuber apagou muitos comentários, bloqueou muita gente e até mesmo teria escondido o número de seguidores, provavelmente por estarem em queda vertiginosa nesse dia. Um print divulgado por ela em seu twitter mostra um e-mail que teria sido mandado para parceiros comerciais dela e amigos, pedindo que considerassem seus posicionamentos políticos na questão.
Como efeito colateral de sua
resenha bastante favorável ao livro do filósofo/astrólogo, Tatiana não só
perdeu muitos seguidores, mas também ganhou muitos novos inscritos com o vídeo
e... É, tem muita coisa que eu preciso dizer sobre esse caso, e estou me
esforçando pra deixar o texto o mais sucinto possível, então aqui vai:
Não, a Tatiana Feltrin não merecia passar por nenhum linchamento virtual, nem constrangimento como o que parece ter ocorrido; aliás, ninguém deveria passar por isso.
O problema é: no momento em que
alguém se dispõe a publicar algo na internet, seja uma opinião, um trabalho, um
desenho, qualquer coisa, a pessoa está se sujeitando a receber todo tipo de
comentário e repercussão de volta. Não estou com isso justificando as
ofensas que teriam sido dirigidas a ela, o que estou dizendo é que nem todos
os comentários foram ataques: muita gente se limitou a lamentar a resenha
dela, outros comentaram no vídeo discordando sobre a visão que a Tatiana
mostrou sobre o autor e sua obra, e outros comentaram detalhes ainda mais
estranhos sobre o autor. Acho que se tratando de uma pessoa polêmica como o
Olavo, dificilmente ela poderia esperar a mesma repercussão que a de uma
resenha sobre John Green.
Eu sou uma dessas pessoas que deixou o canal em
silêncio, para só depois de já ter averiguado muita coisa tentar dizer algo
sobre o assunto. E uma coisa que eu percebi estando entre o público do canal é
que, diferente de muitas pessoas que disseram "sempre terem percebido um
resquício de conservadora nela", eu nunca, nunca mesmo imaginei que
um dia alguém como Tatiana Feltrin, que já fez resenhas ótimas de livros do
Carl Sagan e de livros LGBT como "Ovelha" e "Will e Will",
um dia diria que "concorda 80%" com um livro como o Imbecil
Coletivo. Eu não sei, mas pelo que eu vi nos comentários de muita gente que
abandonou o canal e pela minha própria visão como público dela, as coisas
simplesmente não batem. Alguém como a Tatiana Feltrin que eu via nesses
vídeos nunca concordaria com um livro que diz coisas como essas, por exemplo:
Pra ser justa, ela de fato faz ressalvas contra esse e outros pontos do livro, como as visões pejorativas e conspiracionistas do Olavo de Carvalho sobre homossexualidade, maconha e aborto, por exemplo. Mas ela não chega a citar essa parte sobre religiões afro, que também é bastante estranha:
Fora isso, também tem algumas
contradições e desinformações sobre o autor que a Tatiana faz ao longo do vídeo, dentre elas:
1- "Ele não fez um curso de filosofia e não tem esse diploma, mas e
daí?" Ele não tem diploma de filosofia e nem formação como professor:
na verdade, ao que parece ele saiu da escola na quarta série do ginásio, o que
hoje corresponderia à oitava série. E por vontade própria, segundo essa
postagem no facebook.
2- "Ele foi astrólogo, Fernando de Pessoa
também." Na verdade, não preciso apontar esse fato como demérito.
Seria aceitável que ele fosse astrólogo ou desse cursos de astrologia, mas a
partir do momento em que ele cita Newton como um exemplo de como a experiências
científicas foram desnecessárias para o estabelecimento de leis da física ou
diz que Galileu não podia provar que a terra gira em torno do sol, e portanto, o heliocentrismo está errado, acho que
ele está saindo do campo da astrologia e enfiando o nariz dele no que
claramente não é algo que ele domina;
"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. But man..." |
3- "Ah, quem nunca soltou um palavrão, não
é mesmo?" Isso vindo da pessoa que sofreu ataques massivos por causa desse
mesmo vídeo? Estranho. Se palavrões
são tão comuns e não ofendem, então ela deveria tentar se colocar no lugar de
alguma das pessoas que já foram insultadas por esse senhor.
4- "Olavo estava sendo irônico quando falou da notícia sobre fetos abortados na Pepsi." Na verdade ele estava falando sério na ocasião e tinha entendido errado mesmo, tanto é que ele gasta todo o tempo nesse vídeo em retórica interminável e cheia de falácia do espantalho para tentar se livrar da vergonha depois de ter sido refutado por um biólogo a respeito. Não era ironia, o Olavão acreditou mesmo nessa história bizarra e propagou isso como verdade, chamando as pessoas que bebem o refrigerante de "abortistas terceirizados".
5- "O documentário sobre ele, O Jardim das
aflições, foi proibido de ser exibido." Na verdade, isso nunca
aconteceu. O que aconteceu foi que em diversas vezes ocorreram conflitos entre
grupos de militantes contrários (fonte aqui e aqui).
Eu entendo que é humanamente
impossível saber tudo sobre o autor de um livro resenhado, mas com uma ou duas
buscas no google, não é difícil achar esses dados mais controversos sobre a
biografia dele. Isso é muito esquisito, porque nos vídeos da Tatiana, sempre
ficou claro pra mim o cuidado que a booktuber tinha em cada resenha, falando
sobre os autores e suas obras. Ela não fazia resenhas aprofundadas sobre os
livros, é verdade, mas ela nunca foi tão negligente assim ao ponto de negar
pontos polêmicos de um autor. Quando ela falou sobre Monteiro
Lobato, por exemplo, ela não deixou de abordar a questão das
acusações de racismo que o cercam até hoje.
E veja, o problema não é ela ter
defendido o Olavo de Carvalho na resenha, mas sim ter lançado mão de meias-verdades. Fica a impressão de que
a Tatiana Feltrin não pesquisou realmente as polêmicas sobre as quais ela se
dispôs a falar, ou que escolheu dar essa versão da biografia dele. O que
é bastante esquisito: se você quer defender o ponto de vista de alguém e
principalmente esclarecer os fatos sobre essa pessoa, espera-se que você no
mínimo tenha o tempo e a disposição de levantar esses mesmos dados e usar a
verdade pra isso. Bastante estranho, pra dizer o mínimo.
E se você chegou até esse ponto
imaginando que todo o meu problema com essa resenha é por discordância política
com o livro e o autor, eu tenho que dizer que não foi absolutamente o caso: eu
não teria tido problema nenhum se ela tivesse feito uma resenha sobre algum
livro do Pondé, por exemplo; não aprecio muito as obras dele, mas pra mim não
teria feito a menor diferença. Meu problema é ela estar legitimando uma
personalidade que, dentre outras coisas, sempre se mostrou arrogante quanto ao
meio acadêmico e ao método científico, que é a base pra toda a ciência que
temos hoje.
Esse é o homem que disse coisas
como "Vacinas matam ou enlouquecem" ou "O fumo não causa câncer
de pulmão" e que nunca voltou atrás nessas questões.
Pode olhar no twitter do cara, o tuíte continua no mesmo lugar. E isso foi em 2016... ou seja, faz meros
três anos que ele disse isso pros seguidores dele, e o cara tem 446.109
seguidores até agora. Quem tem o mínimo de senso crítico sabe que negar
imunização, além de ser totalmente errado do ponto de vista moral e
biológico, é também CRIME, sujeito à multa e risco de perda da guarda dos
filhos.
De acordo com essa matéria do Estadão, no mesmo ano de 2016 a
cobertura da segunda dose da tríplice viral que protege de sarampo, caxumba e
rubéola foi de apenas 76, 7% do público-alvo. Por causa de irresponsáveis como
esses, crianças já morreram e outras mais correm risco de morrer de doenças que
tinham sido praticamente ERRADICADAS do país. Simplesmente por uma
desinformação compartilhada por pessoas que se acham as donas da razão
sem terem sequer se sujeitado ao escrutínio alheio (pra usar uma expressão que
o Olavo gosta).
Muitas pessoas nunca presenciaram
as epidemias que ocorriam no Brasil até os anos 60 e 70, e por isso não têm
ideia do perigo que a volta de doenças como essa representam. Deixo aqui
algumas fotos que encontrei de crianças afetadas por doenças como pólio,
sarampo e rubéola, todas com vacinação na rede pública. São fotos chocantes,
aviso:
menina afetada pela poliomielite |
Menino de 7 meses morto por sarampo (fonte) |
criança afetada por rubéola |
E também teve o dia em que ele
disse que a saliva transmite Aids, o que é mentira, e ainda insinuou
que o deputado Jean Wyllys teria a síndrome por ser homossexual... baixaria e desinformação pouca
parece ser bobagem pra ele. Sobre o caso, ele aparentemente nunca se retratou, mas sua atitude foi condenada pela Associação
Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).
A essa altura, alguns podem estar
pensando "Mas Jéssica, a Tatiana podia não saber disso! Além do mais,
ela disse que concordou com o livro dele apenas, não com esses absurdos!"
Ok, muito justo. Mas quem
disse que o livro dele está livre de coisas do mesmo calibre? E não, eu não
estou falando dos trechos mencionados pela Tatiana na resenha dela. Estou
falando de coisas como a naturalização da violência durante a Ditadura Militar
no Brasil, como fica claro nesses trechos:
É muito fácil criticar os
movimentos revolucionários de esquerda que participaram da luta armada na época
e dizer que eles queriam implantar o comunismo como resposta à ditadura e não
defender a democracia. Existe muita coisa pra ser elucidada sobre o assunto,
mas o consenso geral é o de que, se a luta armada não queria a democracia, os
generais presidentes muito menos. E não é por que a ditadura militar durou
~apenas~ 20 anos que ela deixou de ser um episódio sanguinário na história do
país e uma violência contra o povo. Só
pra comparar, a ditadura de Hugo Chávez sucedido por Maduro na Venezuela já
dura 19 anos e ninguém diria que ela é suave
por isso. Eu sei o que Olavo está tentando fazer nesse trecho que a Tatiana
citou no vídeo: ele está tentando colocar a Ditadura Militar como "o mal
menor" que afetou apenas a intelligentsia do país, deixando o povo
"intacto", ao contrário da URSS. O que ele ignora é que, ao contrário
dessa visão, a Ditadura feriu sim muito mais do que meia dúzia de Caetanos
Velosos:
"Entre 1964 e 1985, o Brasil
se modernizou, mas a desigualdade social aumentou, assim como a repressão
política, a dívida externa e a inflação, que voltou a ser galopante nos anos
80." (fonte)
"Em 1973, no melhor ano, a
produção subiu quase 14%. Foi a época de crescimento mais acelerado que o país
já vivenciou, mas se tratava de um crescimento insustentável: o “milagre” dos
anos 70 seria seguido pela “década perdida” dos anos 80, em grande parte devido
aos erros estratégicos do próprio governo militar. [...] "em tempos em que
prevalecia o discurso de que era primeiro deixar o bolo crescer para depois
reparti-lo, grande parte da população jamais recebeu sua fatia: no fim da
década de 80, quase metade da população seguia recebendo menos que dois
salários mínimos. [...]
"O caos econômico deixado de
herança pelo regime militar levaria mais uma década até ser debelado pelos
governos civis, com os brasileiros convivendo com a hiperinflação até a adoção
do Plano Real, em 1994. [...] "Projetos faraônicos que sugaram recursos
públicos sem entregar o prometido, como a Transamazônica, também povoaram o
período. Nos dias da repressão, a fiscalização do poder por parte da sociedade
civil era inviabilizada com a imprensa cerceada. Com a imprensa sob censura e
jornalistas sendo perseguidos, as denúncias não apareciam e tudo ocorria com
uma aparência de normalidade e idoneidade. [...]
"A impressão de que havia
mais segurança pública durante a ditadura é outra meia-verdade: se, em geral,
os números costumavam ser menores do que hoje, não é verdade que o período
militar tenha sido particularmente seguro na história brasileira. Pelo
contrário: a criminalidade só subiu durante a ditadura, iniciando a tendência
que continua até hoje." (fonte)
Ao contrário do que o
"professor Olavo" faz parecer, a ditadura não foi um problema apenas
para uma elite de intelectuais esquerdistas, mas também atrapalhou e impediu as
investigações de pelo menos três casos de desaparecimento, sequestro e
assassinato de crianças na época:
"O caso de Ana Lídia Braga, que abre esse
texto, não foi o único do tipo a vir à tona e ser posteriormente silenciado
durante a ditadura. No Espírito Santo, também em 1973, o estupro e morte da
menina Araceli Crespo, de oito anos, levantou suspeitas contra membros de famílias
influentes do estado – entre os nomes citados no caso apareciam Paulo
Constanteen Helal e Dante Michelini, de clãs ligados ao regime – e acabou não
sendo levado adiante, além de sofrer censura na imprensa. Como no caso de Ana
Lídia, ninguém foi punido. " (fonte).
Casos como o desaparecimento do
menino Carlinhos em 1973 entraram para o imaginário popular por continuarem sem
solução até hoje. (fonte)
Uma música feita em referência ao
caso chegou até a ser vetada pelo governo: "A balada pergunta “onde ele
está / e o que fizeram / com meu pequeno amigo?” e foi considerada perigosa
pelo governo militar, pois faria referência a desaparecidos políticos." (fonte)
"Além das mortes famosas,
outro tabu entre os defensores da repressão é o sequestro, prisão e tortura de
crianças por parte do regime. Filhos de militantes suspeitos de envolvimento na
luta armada, essas crianças foram fichadas como “elementos subversivos” pelo
DOPS. É o caso, por exemplo, de Ernesto Carlos Dias do Nascimento, de um ano e
três meses de idade, preso junto com os irmãos de 4, 6 e 9 anos, todos filhos
de um casal ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) de Carlos Lamarca,
considerados alguns dos presos mais jovens da ditadura. Também são numerosos os relatos de sobreviventes, homens e mulheres, que
sofreram estupros e outras torturas sexuais na prisão, além de casos de mulheres
grávidas que foram obrigadas a parir enquanto se encontravam detidas em
condições insalubres. " (fonte)
Falar em número de vítimas e com
isso justificar que "essa ditadura foi menos sanguinária que aquela"
é o mesmo que ignorar as vítimas indiretas desses crimes, os indígenas
assassinados na construção da Transamazônica, pessoas torturadas que sobreviveram.
Muitas dessas mortes nunca foram
contabilizadas. Existe um livro chamado
"Holocausto Brasileiro" da autora Daniela Arbex, fala sobre um
manicômio em Barbacena, em Minas Gerais, onde pelo menos 60 mil pessoas viveram
e morreram em condições degradantes entre 1903 e 1980:
Segundo o livro-reportagem, cerca
de 70% das pessoas não tinham diagnóstico de doença mental: “Foi o momento mais
dramático. A partir de 1930, os critérios médicos desapareceram. Em 1969, com a
ditadura, o caso foi blindado. Não gosto de chamar assim, mas (entre 1930 e
1980) foi um período negro. Foi criado para atender pessoas com deficiência
mental, mas acabou sendo usado para colocar pessoas indesejadas socialmente,
como gays, negros, prostitutas, alcoólatras”, contou.
(Fonte)
Pode-se dizer que a ditadura
militar não criou o manicômio, mas ela tampouco mudou o ritmo das coisas, pelo
contrário: entre 1969 e 1980, existem registros de venda de 1.853 corpos
de internos, chamados de "peças" pelos funcionários. A venda de
corpos para faculdades de medicina gerava uma renda de 600 mil reais em valores
atualizados. Uma denúncia havia sido feita na revista O cruzeiro, em 1961, e
Jânio Quadros chegara a dizer que mandaria dinheiro para o hospital Colônia,
mas nada foi feito até 1979, quando a reforma psiquiátrica ganhou fôlego, mas ninguém nunca foi punido pelo genocídio.
Mesmo que o número de vítimas
calculado e estimado ainda assim seja menor que o da URSS, quando se considera o extermínio da oposição, a ditadura
militar brasileira leva o prêmio: "Usado pela CIA, pelo governo
americano e acadêmicos do país, o estudo Polity IV é uma classificação dos regimes
históricos e atuais feito pela ONG Center for Systemic Peace (“Centro para Paz
Sistêmica”), criada e patrocinado pela Political Instability Task
Force (“Força-tarefa da Instabilidade Política“), fundada pela CIA em
1994. [...] A nota do Brasil no pior período da ditadura é pior que a de Cuba
(-7) e da União Soviética pós-Stalin (-7). O -9 é idêntico ao da
União Soviética no final do período Stalin, do Camboja de Pol Pot e a China
durante a Revolução Cultural (a nota da China de hoje é -7). Exemplos
de -10 são a Coreia do Norte de hoje e o Haiti de Baby Doc Duvalier. [...]
A metodologia do estudo (veja ao final), não trata o número de mortes causadas
por um regime, mas se ele está ou não exterminando a oposição." (fonte )
Concluindo, me pergunto que
intenção tem aqueles que negam os horrores dessa época e tentam
"suavizar" a visão geral que se tem da ditadura militar no Brasil. Se
negar as atrocidades de Maduro ou Fidel Castro soa monstruoso pra essas
pessoas, porque fazem o mesmo com os generais presidentes?
Tatiana disse em seu vídeo que O
Imbecil Coletivo não é um livro sobre política, e sim sobre cultura; mas se é
esse o caso, então a cultura mostrada aqui não deixa de ser a cultura exaltada
pela extrema direita, hoje chamada por seus integrantes de "direita alternativa".
É uma tática muito comum atualmente, dar novos nomes a coisas reprováveis para
ver se assim tornam-se mais aprováveis por pessoas incautas. É assim que o
"racismo" torna-se "realismo racial" nesses grupos e a
"ditadura militar" torna-se "movimento de 64". Esse
tipo de revisionismo histórico a principio pode parecer inofensivo, como uma
visão alternativa dos fatos, mas logo se torna o combustível de movimentos segregacionistas
e com características fascistas bem marcadas.
Segundo Edgar Morin em "A
cabeça bem-feita", colocar-se em posição de "professor" ou
mestre e manipular ideias e visões em detrimento do real não é algo perigoso à
toa:
"As ideias não são apenas
meios de comunicação com o real; elas podem tornar-se meios de ocultação. O
aluno precisa saber que os homens não matam apenas à sombra de suas paixões,
mas também à luz de suas racionalizações."
Em tempos onde projetos como
"Escola Sem Partido" despontam pelos clamores da autodenominada
"nova direita", é estranho pra não dizer hipócrita que as pessoas que
em tese defendem menos doutrinação nas escolas sejam elas mesmas grandes
doutrinadoras. Os mesmos que tentam "suavizar" a ditadura são
aqueles que querem distorcer a história e colocar na conta da esquerda o
Nazismo, visto que esse parece ser o último obstáculo para a elevação de uma
direita "pura e intocada pelo autoritarismo".
Essa direita conservadora que se
alia a essa extrema direita em um "enorme abraço hétero" mostra dessa
forma que se proclamar a detentora da verdadeira "alta cultura" e dos
"verdadeiros valores" da população não basta para eles: querem
empurrar todos que ascenderam no meio social pelo progressismo, de volta para o
lugar onde estavam, usando para isso o ressentimento que sentem por qualquer um
com "privilégios" percebidos por eles. O negacionismo
científico entra na mistura quando se alia ao obscurantismo e fundamentalismo religioso dessas
vertentes. E nada de bom pode sair disso.
Eu não quero estender este artigo
mais do que já está. Com a leitura do livro e a minha reflexão sobre a resenha
da Tatiana Feltrin, fica claro pra mim que a reação histérica de algumas
pessoas pode ter influenciado na avaliação dela desse livro, visto que O Imbecil
Coletivo é um grande compêndio do ressentimento de Olavo de Carvalho pelos
acadêmicos, principalmente os de esquerda. Não só eles, mas também qualquer
pessoa que ele identifique como parte desse "imbecil coletivo", que
estando num consenso que não o favorece, não são dignos de serem considerados
com o respeito que se deve aos discordantes.
O pouco que parece fazer sentido
no livro se deve mais ao senso comum que realmente pela qualidade do
conteúdo, recheado de falácias que dão ao leitor a sensação de estarem diante
de uma revelação vinda direto de Matrix, sem realmente nunca apresentar um
conteúdo substancial ou mesmo correto na maioria das vezes (muito semelhante a
certos canais do Youtube que proliferam atualmente). A única mensagem que
transparece nele é: "Eu sou Olavo de Carvalho, estou sempre certo e
todo mundo me persegue e me critica porque são desonestos e incultos, esses
retardados". O sentimento que permeia a obra como um todo é a de um
pretenso intelectual que fala e escreve como se estivesse numa ilha de
sabedoria, cercado de um mar de idiotas que, infelizmente, não o consideram
detentor da verdade máxima e incontestável. Sinceramente, eu sinto um pouco de
pena até: deve ser difícil pensar no próximo jogo de palavras bem ensaiadas
para usar cada vez que alguém rebate uma ideia dele.
"Não destrua a realidade que eu criei, PORRA!!!" |
Ao mesmo tempo, penso que a
reação desproporcional de alguns seguidores da Tatiana desde o início
definitivamente contribuiu e continua contribuindo para que mais pessoas se
voltem para a direita conservadora e extremada numa tentativa de "lutar
contra o politicamente correto" ou ao menos se defenderem da turba na qual
a militância facilmente se transforma nessas ocasiões. Apesar de alguns
excessos, eu considero que os movimentos sociais ainda são muito, muito
necessários.
Existem sim, feministas e
ativistas comprometidos com suas causas e que respeitam o esforço histórico de
tantos outros que nos colocou onde estamos. Mas também existe muita gente que não
faz a menor ideia do que está fazendo e só quer se promover às custas de
uma causa. E isso tem em todo lugar. O importante é lembrar que não é com
gritaria e com acusações desenfreadas que as coisas vão mudar necessariamente.
Por outro lado, manifestações
como a de Charlotesville pra mim mostram uma face odiosa do ser humano e eu
considero complicado se manter indiferente em momentos como esse. Imagino que
existem formas não-violentas de se reagir quanto a esses movimentos
neo-nazistas que se propagam pelo mundo, mas fica a questão de até que ponto se
deve permitir a expressão de grupos que ameaçam a livre expressão ao longo
prazo, como o paradoxo de Karl Popper mostra.
Dito isto, não tenho motivos pra não
achar que esse episódio todo não foi outra coisa senão uma desgraceira só: alguém
como a Tatiana Feltrin, que deve ser a booktuber com o maior número de
inscritos no Brasil, se posicionar de maneira "80%" positiva ao
livro de uma das figuras mais exaltadas pela direita extremista,
conspiracionista e reacionária, num ano em que inúmeros representantes desse
mesmo setor foram eleitos, é muito amargo de engolir e eu acho que força um
pouco o conceito de ser alguém neutrocom relação a "levantar bandeiras", como ela mesma se declara. Um vídeo como esse no momento em
que o próximo presidente é alguém que construiu sua reputação em cima de
declarações explícitas de racismo, sexismo e homofobia sob pretexto de
estar rompendo com "uma ditadura marxista" é, no mínimo,
deprimente. E levando em conta que o tal considera Olavo como seu
"guru", meu soa bastante preocupante também. Desconsiderar tudo o que
esse "intelectual" fez e ainda faz iludindo as pessoas com seu
discurso cheio de conspiracionismo e negacionismo científico não só é
desonesto, como é incentivar as pessoas a entrarem numa espiral de questionamentos
de onde elas não saem mais inteligentes, mas o contrário.
Eu ainda tenho muito apreço ao
tempo que passei assistindo as resenhas da Tatiana Feltrin, gosto muito do
trabalho dela nos especiais de Halloween e agradeço imensamente por ela ter me
apresentado Edgar Allan Poe. Mas numa época igual a essa, num tempo como este,
eu prefiro alguém que se mantenha mais crítico quanto a figuras como Olavo de
Carvalho, que tanto alimentam as conspirações e os ressentimentos dessa
"onda conservadora", um movimento que ao meu ver atualmente põe muito
mais em risco a liberdade individual e de expressão do que os infames deslizes
dos guerreiros da justiça social. Basta ver quem são os representantes dos
principais países atualmente e checar qual a agenda deles; definitivamente "lacrar
muito no facebook e no twitter" não deve estar entre as prioridades.
Por último, pra quem estiver procurando outro canal literário pra assistir, pode dar uma conferida no canal da Isabella Lubrano, o Ler Antes de Morrer.
E também indico os canais Primata Falante e o Canal do Pirulla, que são atualmente dois dos melhores canais de ciências no Youtube brasileiro atualmente.
E pra quem quiser conhecer um bom
canal sobre movimentos sociais, sugiro esse vídeo do brilhante
canal Espectro Cinza, da Glenda Varotto, o canal feminista mais bacana atualmente (sim, é o
melhor cumprimento que eu consigo pensar, perdão) e talvez uma das poucas
youtubers verdadeiramente racionais e críticas que ainda existem pela internet.
Na verdade, o canal dela é tão bom que eu recomendo ele inteiro, assistam todos
os vídeos agora, vão, VÃO!
Por último, deixo esse vídeo do
Carl Sagan, que considero emblemático sobre o problema da razão frente ao
obscurantismo que, de tempos em tempos, reaparece para testar até onde o ser
humano está disposto a abraçar suas crenças pessoais em detrimento da realidade.
E pra quem não podia ver a hora
do artigo acabar ou nem mesmo leu (o que pode ser um paradoxo agora), o próximo
será sobre um romance policial cujos protagonistas são gângsteres mordazes que
vivem sob o manto da noite e não poupam ninguém de seus ataques... Sim, estou
falando de gatos, é claro!
Aguardem.