Resumo do conto (ATENÇÃO, SPOILERS)
"Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso."
"— Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua."
"Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que estava purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele! ‘A mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos, rolando por este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um rapazinho miúdo, tão no desamparo — e morrendo como homem, por causa do patrão... um patrão de borra, que estava p’r’ali no escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher!..."
Joãozinho Bem-Bem, vivido por José Wilker no filme de 2015 |
"O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também... E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-o-mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. [...] E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes. Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura..."
"Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações. Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam — talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes: — Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais..."
"— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz! Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral."
"Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou: — Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas! [...] Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento. Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha.., seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem! Depois, morreu."
O autor
E aparentemente, um grande fã de gatinhos. Gostei. |
"A breve oração ensinada pelo padre é repetida por Matraga algumas vezes durante o filme. Em um momento, ao fim de uma conversa na qual ouve as más notícias sobre a mulher e a morte de Quim, nhô Augusto repete as palavras do padre: "Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso". Mas sai de casa correndo e urrando, embrenhando-se no mato. Ele cai de joelhos, bate com os punhos no chão e grita: "Pro céu eu vou e vou mesmo, por bem ou por mal! Pro céu eu vou nem que seja a porrete! Pro céu eu vou!". A oração do padre é substituída por esta, criada por nhô Augusto, e corresponde, ao contrário das palavras ensinadas pelo padre, ao que ele sente de fato." (fonte)
Transformações radicais
A música "Réquiem para Matraga" já foi usada na novela Velho Chico e, mais recentemente, no filme Bacurau. Eu sei, ninguém aguenta mais ouvir falar de Bacurau, mas pra muita gente (assim como pra mim) pode ter sido o primeiro contato com a música.
Réquiem significa "descanso" em latim e é um tipo de missa fúnebre celebrada por igrejas cristãs. Também designa composições criadas para essas missas. (fonte)
Quando se olha a letra da canção composta pelo paraibano Geraldo Vandré para a adaptação cinematográfica do conto, lançada em 1965, percebe-se que ele dialoga muito bem com os temas da história de Augusto Matraga:
Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorarTanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar
Bem e mal, vida e morte, espiritualidade, o sacrifício em prol do coletivo, a revolta contra a violência e injustiça no campo, tudo isso transparece belamente em meio dos acordes de viola caipira, violão e triângulo e influências do interior do Centro-Oeste e Sudeste (fonte):
Muitas outras canções do compositor repetem algumas dessas características, como "Fica mal com Deus", "Canção nordestina" e "Disparada", provavelmente um dos maiores clássicos de Vandré, só atrás de "Pra não dizer que não falei das flores". (No meu coração, porém, Disparada sempre ganha).
"Vandré, àquela altura, era ovacionado como o mais valente dos compositores. Especula-se que a euforia causada pela canção tenha apressado o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), dali a um mês e meio." (fonte)
Outro tema do conto e talvez o mais profundo, porém, se interliga de uma forma um tanto estranha com o compositor da música, que é a transformação radical que uma pessoa pode sofrer ao longo de uma vida. Enquanto no conto Augusto Matraga se transforma em Nhô Augusto, Vandré passou por algo semelhante ele próprio durante a ditadura militar:
"Ainda em 1968, Vandré fugiu do país, voltando bastante diferente em 1973. O ex-empresário, José Guedes, revelou em entrevista à revista Trip que após apresentação do Maracanãzinho, receberam o recado dos militares de que deveriam sumir. Ainda de acordo com o profissional, o músico passou mais um tempo em São Paulo, até partir para o Rio, onde se escondeu na casa do escritor Guimarães Rosa, de onde partiu para o Uruguai dentro de uma ambulância. Jair Rodrigues relatou à publicação que, ao voltar a reencontrar o amigo, já novamente no Brasil, foi recepcionado por uma estranha afirmação: "Eu cheguei todo animado e disse: 'Vandré'. Aí ele me olhou e falou: 'Eu sou o Geraldo Pedrosa, o Geraldo Vandré morreu em 1968'" (fonte)
O que teria acontecido com Geraldo Vandré nesse período é controverso. Apesar de certos biógrafos (leia-se: negacionistas da ditadura) dizerem que ele "nunca foi perseguido, nem torturado", é visível uma mudança profunda da identidade do músico, que era descrito por familiares, amigos e conhecidos como tendo um temperamento forte e irritadiço:
"Vandré se exilou no Chile e de lá viajou para Alemanha e França. Quando voltou, em 1973, já não era o mesmo. Decidiu que só faria “canções de amor” e, para espanto de seus fãs, compôs "Fabiana", em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Para muitos de seus contemporâneos, ele teria enlouquecido em decorrência das sessões de tortura. Em 2010, Vandré ressurgiu numa entrevista exibida pela GloboNews. Negou que tenha sido torturado e repudiou o rótulo de autor de músicas de protesto. “Eu não faço canção de protesto. Eu faço, fazia, música brasileira, canções brasileiras”, disse." (fonte)
Quando eu disse transformações radicais, era disso que eu falava. Do que mais vocês pensaram que fosse?
Ok, faz sentido. |
Como dizia Raul Seixas, às vezes é preferível mudar de opinião que insistir na velha forma de ver o mundo e tudo. Na verdade, a única forma de ganhar maturidade é essa, estar sempre reexaminando suas crenças e repensando ideias. Por outro lado, há casos em que a mudança é tão drástica que passa a impressão de uma falta de coerência interna, como se a pessoa não tivesse tido tanto comprometimento assim com os ideais de outrora do que se pensava originalmente.
"O artista de 80 anos vive em São Paulo e, segundo amigos ouvidos pelo biógrafo, continua compondo, embora não se mostre disposto a gravar músicas ou publicar poemas." (fonte)
Um dos pontos que eu concordo é que talvez não dê mesmo pra chamar o Geraldo de artista engajado: ele provavelmente simpatizava com os movimentos estudantis e a esquerda que lutava contra a ditadura, mas talvez ele apenas quisesse ser isso, um artista. Por tudo o que eu li sobre as longas horas em que ficou compondo a melodia de Réquiem, ele realmente devia adorar cantar e tocar, principalmente para o público. E até isso talvez tenha sido tirado dele em seu exílio.
Nessa linha de raciocínio, pra mim não é difícil ver no lugar de um desses artistas que "caducaram" com a idade, alguém semelhante a Augusto Matraga: um homem ferido que queria urgentemente escapar de uma força muito maior que ele, suprimindo sua identidade e criando outra para si no processo.
Ou, talvez, ele só tenha caducado mesmo. Nunca saberemos.
Qualquer que seja o motivo da mudança, Geraldo Vandré pode até estar "morto", mas suas canções ainda vivem e são celebradas por todo o país e afora.
Tempos atrás (quando ainda não éramos governados pelo capiroto) eu cheguei mesmo a debochar de como algumas pessoas adoravam essas músicas, pensando "Ah, não é tudo isso." Agora, conforme vemos essa situação calamitosa que dominou o país, entendo como essas canções foram e são importantes pra geração que viveu e que lutou na época contra a opressão institucionalizada pela ditadura militar.
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