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quinta-feira, 22 de julho de 2021

Flipop 2021 - Minha cobertura (quase) completa do primeiro dia



Começa hoje a 5ª edição da Flipop (Festival de Literatura Pop), que vai dos dias 22 a 25 deste mês e é promovido pela Editora Seguinte. O evento, sediado em São Paulo nos anos anteriores, foca no público leitor jovem e promove debates com autores de diversos gêneros, tanto nacionais como também estrangeiros.

Realizado desde o ano passado de forma remota devido à pandemia, assim como na anterior, esta edição também teve inscrições gratuitas por e-mail. Confesso que mesmo antes da pandemia eu não era frequentadora habitual de eventos literários (nem qualquer evento, aliás), no máximo a Bienal na minha cidade, mas essa mudança na realização me estimulou e eu decidi não perder de novo essa chance de prestigiar os autores convidados.

Até porque, essa é uma pauta muito mais interessante que a minha resenha daquele livro do Jô Soares onde o Sherlock Holmes tem uma diarreia, mas não se preocupem, ela sairá. Um dia.

Dito isso, lógico que não me acho no nível de cobrir um evento desse porte (minha net caiu e eu só pude ver a primeira mesa, a segunda eu vi um pouco e a terceira acabei não vendo), mas eu vou tentar ao menos compartilhar um pouco da minha experiência com vocês.  


Então, o que rolou no primeiro dia da 5ª edição da Flipop?



O evento contou com um ambiente virtual que simula o ambiente físico do evento, num esquema parecido com aquelas visualizações do google maps. Achei bacana, apesar de ter demorado um pouco pra me localizar pelo celular até finalmente esbarrar com o tutorial de navegação. Fora essa dificuldade inicial, foi relativamente fácil acessar o palco principal onde acontecem as mesas de debate. Além disso, os autores Bruna Vieira, Clara Alves e Pedro Rhuas se dispuseram a autografar seus lançamentos em sessões virtuais disponíveis por link mediante compra. Achei essa uma solução bacana para ter aquele momento com um autor querido guardado na memória sem correr riscos.

Outro detalhe importante de ser notado é a presença dos intérpretes de Libras, que se revezaram em tempo real durante as três horas de evento, trazendo acessibilidade ao festival. A audiência também conta com um espaço para mandar perguntas e mensagens, mas como eu usei meu celular a maior parte do tempo em tela cheia, não observei muito se funcionava (e também tive alguns contratempos com a minha internet no fim da primeira mesa, então não vi se responderam alguma pergunta dos internautas, mas acredito que sim).




A primeira mesa começou às 15 hrs, com o tema YA ontem e hoje, com a editora de livros YA Ana Lima e os autores Juan Jullian e Paula Pimenta. Quem mediou foi a Frini Georgakopoulos, a autora de "Sou fã, e agora?". Como foi explicado na mesa pra quem não sabe, YA significa Young Adult, e é uma categoria de livros cujos personagens tem por volta de 17 a 20 e poucos anos de idade, vivenciando e focando em experiências típicas dessa faixa etária. Não tem necessariamente a ver com a idade do público consumidor de fato, já que uma boa parte dele são pessoas mais velhas, mas o público alvo é definitivamente esse. 

Os autores discorreram sobre as mudanças dos primeiros anos 2000 para cá, e eu acho que muita gente gostaria de ter ouvido menos citações a HP como influência, mas a questão não era debater se era ou não uma boa influência, mas dizer que foi, definitivamente, uma influência. O pessoal da mesa não está errados de forma alguma nisso porque esses livros foram consumidos e exaltados à exaustão nessa época e infelizmente são até hoje, apesar das muitas problemáticas envolvidas que não eram pensadas até então, mas foram aparecendo a medida que as pessoas ofendidas começaram a reclamar e se fazerem ouvidas. 


Aquela autora, a JK ROLOS


Um autor independente que reproduz um preconceito em sua escrita e corre atrás para consertar o erro e se desculpar é bem diferente de uma autora com um patrimônio de milhões de libras e um grande alcance midiático, simplesmente determinada a espalhar ainda mais preconceito, transfobia e desinformação que pode realmente influenciar leis e arruinar a vida de inúmeras pessoas, eu acho que o público consumidor já deveria ter entendido que dar dinheiro pra essa senhora é muito errado.

"Ain, Jéssica, mas marcou a minha infância..."

Muita coisa também marcou a minha, tipo aqueles caminhõezinhos de brinquedo com bolinha de açúcar dentro, mas nem por isso eu preciso continuar consumindo, né? Tem tanto livro bom e nacional saindo hoje em dia, precisamos mesmo sempre voltar a HP?

Pra ser justa, fizeram sim uma menção bem indireta e breve a essa questão, mas acho que todos nós sabemos o motivo de ninguém poder apontar diretamente o elefante branco na sala:




Enfim, outros autores e obras não menos problemáticos também foram citados, como Percy Jackson, John Green, Crepúsculo... Como eu não quero fazer uma "problematização infinita" aqui e existem pessoas muito mais gabaritadas do que eu para falar, vou sugerir que pesquisem se quiserem saber os detalhes. Por mais que eu pessoalmente goste de muitos desses livros como também gostava de filmes e tudo relacionado a Harry Potter, não dá pra ignorar que a maioria dessas referências de literatura juvenil são em sua maior parte gringas e bem ruins. A gente gostava porque não conhecia outras opções, a verdade é essa. 

Felizmente esse panorama vem mudando cada vez mais justamente porque agora nós temos sim alternativas melhores, mais inclusivas e que vem de autores com os quais podemos nos identificar e socializar ainda por cima, tudo graças às redes sociais. 

As Artes Mágicas do Ignoto, coletânea de diversos autores disponível em e-book e livro físico por financiamento coletivo. Saiba mais aqui e aqui.


Muitos dos convidados presentes eu conheci graças ao twitter e instagram e de outra forma eu dificilmente encontraria os livros deles, pois nem todos são publicados por grandes editoras ou estão disponíveis em livrarias na minha cidade. Eu moro no interior do estado do Rio e por mais que tenha um acesso mais fácil a livros, não tem tantas livrarias quanto numa capital.


A mesa também abordou as dificuldades de conciliar as histórias e personagens com o público leitor, que às vezes acaba sendo diferente do esperado (ou mais jovem, ou mais adulto), além da inclusão de mais diversidade nos livros para o público jovem, como por exemplo com personagens e autores LGBTQIA+. 



Juan Jullian, autor do aclamado "Querido Ex", contou que se inspirou em David Levithan, autor estadunidense de "Dois garotos se beijando" e "Todo dia". Ele disse que essas leituras foram muito importantes para se entender melhor, mas que não se via nesses livros, já que são realidades diferentes. Ele destacou que por ser negro e gay, não existiam muitas histórias com as quais pudesse se identificar, e que seu primeiro livro foi bastante autoral por conta disso.




A Ana Lima destacou que a representatividade LGBTQIA+ não é a única pauta existente no debate (temos também a questão racial, de pessoas com deficiência, gordas, só pra citar alguns) mas que é importante e veio para ficar. Ela também relembrou o caso da Bienal do Rio de Janeiro em 2019, na qual o então prefeito Crivella, num rompante de ignorância, homofobia e marketing político, tentou censurar a HQ dos Vingadores que mostrava um beijo entre dois personagens masculinos. "Não dá pra descansar, tem mais espaço, mas temos que ficar atentos." declarou ela, e a frase mais repetida pela mesa a respeito de representatividade foi "Manda mais que tá pouco!" 

Também houve discussão sobre os caminhos dos autores independentes e a necessidade cada vez maior de interagir com redes sociais para alcançar leitores. Paula Pimenta citou o Tik Tok, declarando que não tem muita disposição para usá-lo "Fiquei velha", brincou ela. Pelo menos, você ficou velha Paula. E eu que já nasci velha?, chora esta blogueira que vos escreve.

Sobre clichês no YA, Frini comentou que a tendência atual são personagens contemporâneos lidando com situações contemporâneas e perguntou aos presentes quais temas eles achavam que deveriam ser mais abordados. 

Paula Pimenta constatou " Se clichê não fosse bom, ninguém repetiria. Se torna clichê porque é bom." Eu pessoalmente discordo e concordo com essa afirmativa, porque pra mim, depende do clichê. Acho que certos clichês são repetidos mais por comodismo do que por serem realmente bons, até porque o que faz o clichê ser bom na verdade é a execução. Ela citou uma fala da personagem de Débora Falabella em Lisbela e o prisioneiro, quando a mocinha assiste o filme no cinema e apesar de já saber tudo o que vai acontecer, ela curte a experiência porque o bom mesmo é a jornada e não o objetivo. Ou seja, explicou tudo o que eu disse sobre execução, mas com outras palavras. E eu já falei que gosto desse filme?

Jullian respondeu indagando para quem esses clichês eram feitos, e que muitas vezes as únicas histórias com alguma representatividade eram trajetórias focadas somente nas dores de pertencer a uma minoria social. "Não precisa ignorar, mas variar isso."



Ana Lima disse "O interessante é colocar personagens diferentes nesses clichês." E citou o livro "Você tem a vida inteira", que traz um protagonista portador do vírus HIV, mas numa história leve que não vê comumente associada ao tema.

Também falaram um pouquinho sobre preconceito literário com o YA, a competição pela atenção com redes sociais e outras mídias. "Não dá só pra pedir, é importante consumir", ressaltou Ana Lima, e eu fiquei só lembrando dos saudosos posts do blog Mais de Oito Mil sobre fãs que chiam atrás de determinado anime pra depois ignorarem solenemente e o anime ser cancelado com audiência pífia, ou qualquer outra das tretas editoriais de mangá no Brasil. Sobre criar o hábito da leitura nas crianças e adolescentes e manter na idade adulta, ela disse "O importante é ler, ler o que quiser. Eu sou a favor de ler todos os livros, qualquer livro. Que leiam e continuem lendo." Ela também sugeriu a leitura de clássicos com acompanhamento nas escolas ou entre grupos e familiares.




Por fim, cada autor convidado falou de seus lançamentos e projetos e foi logo depois disso que minha net caiu. O que eu pesquei depois foi que Paula Pimenta está escrevendo o quinto livro de sua série Fazendo Meu Filme e cuidando de um filme a ser lançado, Juan Jullian irá lançar Maldito Ex em agosto e  a Ana Lima falou dos lançamentos A Maldição do Carneiro de Ouro e da continuação das coleções Astrológicas.



E essa foi apenas a primeira mesa e eu já estou acabada de escrever e comer kibe enquanto estou de pijama. Sério, eu acho que minha cobertura informal vai parar por aqui por hoje, mas a Flipop continua com mais duas mesas às 17hrs e às 19 hrs (que eram sobre HQs e poesia, se não me engano. No  momento em que escrevo elas já ocorreram, mas acho que colocaram os vídeos no Youtube). Diversos autores convidados que valem muito a pena conhecer estarão presentes nos próximos três dias, além de  conteúdos exclusivos no site, descontos nas lojas virtuais, sorteios e outras interatividades. 

Acompanhem a cobertura especializada pelo twitter e instagram no perfil da Editora Seguinte e pela hashtag #Flipop2021.


sábado, 26 de junho de 2021

Sherlock Holmes e o Brasil, ou, Que diabos o Conan Doyle fumava?


 


Sei que o título soa um pouco agressivo, mas eu juro que estou me controlando...

Como alguns de vocês sabem, eu gosto bastante de Sherlock Holmes em geral. Eu não assisti a série "Sherlock" com o ator que faz o doutor Estranho, mas li boa parte dos contos e romances de Sir Arthur Conan Doyle e assisti os filmes com o ator que fez o Homem de Ferro. Ah, e eu também gostava bastante do Ratinho Detetive (o filme da Disney) quando era criança.




Esse parágrafo que falo sobre Sherlock Holmes citando diversos outros produtos midiáticos é puramente intencional. Acho que demonstra como ele é parte indissociável da cultura pop e presente desde games até os mais inimagináveis produtos.

A minha medida de fama é a pessoa ter um travesseiro com a imagem dela


Eis que em meio às minhas leituras de pandemia, peguei o volume 4 do meu box das obras completas de sherlock holmes pra ler, e me deparo com isto:

"[...] Como ela morreu, eu não sei, mas tenho certeza de que ele infernizou a vida dela. Ela era uma mulher dos trópicos, brasileira de nascimento, como o senhor deve saber."



Este trecho é do conto "O problema da ponte Thor", que estranhamente, não tem nada a ver com o super herói da Marvel. É sobre o misterioso homicídio da sra. Gibson, a esposa de um magnata americano explorador de ouro que de acordo com o testemunho dos empregados, teria ocorrido por uma disputa amorosa entre ela e a jovem governanta deles, a srta. Dunbar. No caso, a vítima e (spoiler: também vilã, que se suicidou para incriminar sua rival) é descrita como uma "mulher brasileira", "tropical de nascimento e tropical de natureza, filha do sol e da paixão" de acordo com o empregado, personagem do conto.



Minha primeira reação ao ler foi "Nossa, que coisa patética" e minha segunda reação foi "caralho, ele falou do Brasil?" 

Por que a coisa que mais chama a atenção de brasileiro é quando algum gringo da gente. Duvida, olha a quantidade de comentários em português brasileiro nesse vídeo:





Não sei por que isso acontece, mas imagino que seja quase visceral de dizer "espera um pouco, veja bem...", parecido quando criticam família: todo mundo de dentro pode brigar, mas ai de alguém de fora falar qualquer coisa. 

Nesse caso, tá bem claro onde o meu título queria chegar: esse é só um exemplo de um problema bastante presente nos contos e histórias do Sherlock Holmes escritas pelo Arthur Conan Doyle que é a xenofobia e o racismo com que o autor trabalhou alguns dos suspeitos e vilões de seus casos. 

Claro, é perfeitamente compreensível que esse problema exista, dada a época em que foram escritos e o contexto do autor, é um reflexo da mentalidade que existia, mas isso não deve ser uma desculpa pra normalizar esse pensamento. De acordo com a Wikipédia, O conto em questão foi publicado em 1922 na The Strand Magazine (UK) e na Hearst's International (US). Para termos um parâmetro, em 1926, editores estadunidenses já consideravam "O presidente negro", escrito por Monteiro Lobato (que financiava jornais eugenistas, diga-se de passagem) como um livro racista. Então, por mais que o pensamento retrógrado da época seja algo a ser considerado, não dá pra dizer que era um pensamento unânime, até por que, certamente nunca é.

"Ah, mas o Doyle já era um sexágenário, ele não podia saber que era errado." O argumento da idade é sempre uma desculpa reserva, afinal, quem de nós nunca ouviu alguém mais velho falando bobagens? Por outro lado, ser idoso nunca deveria ser desculpa pra deixar de aprender com os erros.

O que eu quero aqui não é "problematizar" o autor e a obra do jeito que a internet costuma fazer, até porque eu sou uma zé ninguém perto dele, né? Não existe cancelamento pra uma obra e um autor tão influentes na cultura pop. Mas eu acho importante que os fãs e leitores de Sherlock Holmes conheçam esse lado meio indigesto e tenham o senso crítico de reconhecer os fatos. Pra mim, saber desse e de outros deslizes não foi bem uma surpresa porque meu livro preferido do Sherlock, o Cão dos Baskervilles, já contava com um pequeno comentário sobre uma coadjuvante costa-riquenha, descrita como tropical e exótica, que eu considerava um pouco nessa linha. Não sei se era exatamente ofensivo, mas era algo que me fazia levantar a orelha, digamos assim. No livro, Sherlock chega a dizer baseado apenas em sua origem que essa mulher seria capaz de perdoar tudo do marido, menos uma traição. Por que mulheres "latinas" não perdoam traição.



Eu adoro esse livro e adoro os contos, mas esse tipo de coisa é incômoda e imagino como deve ser para alguém diretamente afetado por essas falas.

Não tô aqui pra apontar se alguém deve ler isso ou aquilo, só quero compartilhar a sensação engraçada de vergonha alheia que eu tive com esse e diversos trechos do conto; o mesmo não posso dizer de outros do autor que são francamente insuportáveis e ruins mesmo, com racismo flagrante contra negros e povos ciganos. 

Por exemplo, no conto "O caso do círculo vermelho", o bandido é descrito pelos personagens como um homem negro com características animalescas, e perseguia um casal de italianos, em especial a mulher, descrita como uma bela italiana cujo rosto estava pálido de medo. Presumidamente, branca: 

"Eu havia despertado nele aquilo que ele chamava de 'amor'- amor de um selvagem, de um bruto.[...] avançou e me enlaçou nos braços fortes, apertou-me como um urso, me cobriu de beijos e me implorou para ir com ele."

 


Não acho que precise explicar qual o problema de uma representação desse tipo, né? A imagem do homem negro bruto e animalizado perseguindo uma pobre moça branca foi muito explorada por racistas na mídia, em especial estadunidense como no filme " O Nascimento de uma nação". 


Infelizmente, essa não é a única vez que um personagem negro foi assim descrito nos contos. E o problema nem é que haja vilões e antagonistas de outras etnias além da branca: o problema é que enquanto os de etnia branca geralmente são descritos como bandidos até "admiráveis" em sua inteligência e outras características que os tornam um pouco mais humanizados, os demais são sempre mostrados como "selvagens ignorantes", brutos e sem qualquer característica que lhes defina além disso. E nem vou falar da vez em que Sherlock descobriu que o vilão sinistro por trás do ataque a um bebê era... uma criança com deficiência.

Bem, se estiverem curiosos, podem ver essa lista dos contos do Sherlock Holmes em inglês, do pior para o melhor. O estilo dela é bem curto e engraçado, e além de mostrar todos os contos com possíveis gatilhos de preconceito, também mostra onde estão os momentos mais shippáveis entre Sherlock e Watson no cânone. De nada.

De resto, não vou perder meu tempo resenhando o conto, porque eu realmente não achei ele nada demais além de fraco. A conclusão é até interessante, mas tudo no mistério parece girar ao redor do fato da vítima ser uma brasileira de "sangue quente" e passagens como essa distraem de todo o resto: 

"Ela estava louca de ódio, e o calor da Amazônia estava sempre em seu sangue."


"Eu tenho o olho do tigre e lagarto, cobra e macaco..."


Uma coisa interessante que eu percebi também foi que "O problema da ponte Thor" não é a única vez em que o nosso país é mencionado nas histórias do Sherlock Holmes: existe uma menção à Pernambuco, que seria o estado de origem da vilã do conto "A aventura das três cumeeiras". E só pra constar, esse é outro conto péssimo que já começa com uma descrição racistíssima (se é que essa palavra pode existir). Surpresos?




Além desse, me disseram que "O caso da Vila Glicínia" também teria uma menção indireta ao Brasil, mas na forma de um antagonista descrito como um tirano com ares de imperador, que seria ninguém mais, ninguém menos que Dom Pedro II ???? 


Sherlock segurando uma galinha. Agora posso morrer em paz


Infelizmente, eu li o conto, e não, ele não era o Dom Pedro II, vocês podem sossegar o rabo ansioso de vocês, era só Dom Juan Murillo, um personagem (acredito eu) fictício que teria sofrido um levante do povo de seu país fictício na América Central e fugido para a Inglaterra, onde aterrorizou os locais com os "rituais pagãos" que ele e o criado "selvagem" praticavam... É, isso só fica pior. 


Esse gato tá um pouco grande, não?


Agora, saindo um pouco do assunto Sherlock Holmes, acabei descobrindo que dentre os romances e contos do autor que não tem a ver com o personagem, existe um conto chamado "O gato brasileiro". Ele foi publicado primeiro em 1898, e aqui no Brasil saiu pela Editora Bandeirola na coletânea "O Doutor Negro". Whait a minute...

Ora, ora, ora...


É um conto de mistério e terror, muito parecido com os do Alan Poe, dizem. Cá entre nós, não acho que algo com esse título possa ser assustador, mas considerando a época em que foi escrito, devia estar na lista de coisas macabras para os ingleses vitorianos, junto com coisas como andar de bicicleta e tomar ar fresco.

Bom, não há muito o que fazer, a não ser concluir que Arthur Conan Doyle era um homem do tempo dele, para bem e para mal (principalmente para mal). Ele sempre escreveu contos e histórias com elementos racistas, mas porque tantos de seus últimos contos são lotados desse problema, eu não sei dizer. É como se, de alguma forma o autor implorasse que alguém talvez dissesse "Ei, pare de escrever esta merda!" hum...


Ou talvez ele só tenha sido substituído por um bando de chimpanzés com máquinas de escrever, mas daí é especular muito


E antes que me acusem de anacronismo, isso foi uma piada, ok? É um fato notório que o autor detestava ser sempre ligado ao personagem do Sherlock Holmes, pois isso ofuscava todo o resto de suas obras. Então, pra mim, imaginar que ele poderia escrever alguns desses contos de muita má vontade só pelo dinheiro e talvez torcendo pra alguém perder o interesse no personagem não parece tão implausível. 


Por outro lado, eu também não sabia, mas o Conan Doyle também é autor de um livro denunciando as atrocidades e crimes cometidos no Congo sob domínio de Leopoldo II, rei da Bélgica. Sobre a "partilha" do continente africano e a "compra" do Congo, cito esse trecho da wikipédia: 


"Num ofuscante espetáculo de virtuosidade diplomática, Leopoldo obteve da conferência não somente acordo na transferência do Congo para uma de suas muitas células filantrópicas, tampouco para sua autoridade de Rei dos Belgas, mas simplesmente para si. Ele se tornou único dono de 30 milhões de pessoas, sem constituição, sem supervisão internacional, sem ao menos ter estado alguma vez no Congo, e sem mais do que uma meia dúzia de seus obedientes tivesse ouvido falar nele."



 

É um capítulo muito triste da história e que eu aconselho qualquer um (principalmente brancos) a pesquisar e saber mais a respeito. Agora, se tal livro era parte de um movimento político inglês (o que eu suspeito muito) ou se tinha também algo das opiniões do autor, eu não sei dizer. O que eu sei é que se mesmo alguém como Doyle foi capaz de ver o absurdo que aquilo era em 1909, é porque a situação devia estar muito feia. Isso não ameniza as coisas que o autor escreveu em suas demais obras, mas mostra como é muito comum e possível ser racista mesmo sem se ter consciência disso ou intenção. Se fosse assim, tudo seria simples.


Finalizando numa nota menos depressiva, Arthur Conan Doyle talvez tivesse alguma fixação estranha pelo Brasil, talvez pressentisse o caos e a loucura que esse país seria no futuro, ou talvez simplesmente não se lembrasse dos outros países da América do Sul. Mas assim como ele não se esquecia do Brasil, o Brasil também não se esqueceu dele:



"Nesta história o famoso detetive inglês tem suas faculdades analíticas e seu senso de observação afetados pelo calor dos trópicos e por circunstâncias inesperadas. Em uma perseguição ao misterioso assassino Sherlock tem de parar por causa de um vatapá o qual lhe gerou uma dor de barriga."

 

 Carma is a bitch, né Doyle?

E acho que encontrei minha próxima leitura. Aguardem.


  

terça-feira, 4 de maio de 2021

Resenha: A Hora e Vez de Augusto Matraga

 



Ficha Técnica:
Conto (lançado avulso em edição própria e também presente no livro Sagarana)
Autor: João Guimarães Rosa
Editora: Global (1ª edição, 2019)


Sinopse: "Conto que encerra o livro Sagarana, “A hora e vez de Augusto Matraga” traz a história de um homem sertanejo acostumado a se impor pela força em seu cotidiano. Nhô Augusto é a perfeita síntese do mandonismo local que se fez presente em tantas cidades brasileiras durante o século XX. Manejando de forma magistral o dilema universal entre o bem e o mal, João Guimarães Rosa construiu um enredo surpreendente, que leva os leitores a refletir acerca de seus instintos."


A resenha de hoje é de um conto por que, sendo sincera, a pandemia drenou toda a minha vontade de ler coisas novas. As únicas coisas novas que tenho lido ultimamente são livros nacionais e um romance histórico que eu ainda não tinha terminado de ler, mas paciência! Conforme eu termine, farei resenhas deles também, principalmente por serem livros de autores independentes e que por isso mesmo merecem e precisam de todo o apoio e amor do público.




A motivação pra resenhar este conto veio da minha crescente apreciação do gênero "música revolucionária que o povo ouve com raiva no coração e sangue nos zóios" que pra mim, é cheio de músicas do Geraldo Vandré, Chico Buarque, Raul Seixas, Elis Regina dentre tantos artistas visados pela ditadura. 

Por terem vivido essa época e sentido na própria pele o pavor da censura, da paranoia e das ameaças sobre si e seus amigos e familiares, eles imprimiram em suas obras tanto a percepção das injustiças sociais e políticas da época, como também a vontade de questionar isso, o que foi o motivo para tantos terem sido banidos do país pelos militares. E isso tem que ser lembrado, especialmente nas circunstâncias atuais. 


Resumo do conto (ATENÇÃO, SPOILERS)





A Hora e Vez de Augusto Matraga (exatamente assim o título, a tentação de colocar um "a" antes de "vez" é grande, eu sei) nos apresenta o protagonista Nhô Augusto, o personagem título filho de um coronel que é um tremendo babacão. Um playboy com dinheiro que pensa que pode tratar os outros, principalmente mulheres, como se fossem lixo porque a população o venera naquele lugar (mais por medo e falta de escolha do que por admiração genuína, é claro). Se fosse hoje em dia, ele seria o canalha que se desvia de toda e qualquer acusação na justiça por ser filho de um político e é melhor eu voltar pra história porque tem muitos exemplos que se encaixam perfeitamente nisso.





Como gente ruim sempre encontra alguém pior, Augusto acaba vítima do Major Consilva, que manda seus capangas lhe darem uma surra  muito pior que aquelas de criar bicho. Após lhe marcarem com ferro em brasa na bunda (sério, é isso mesmo que você leu) ele pula de um barranco para se salvar e termina de se quebrar ainda mais. Os capangas se vão acreditando que ele está morto pela queda. Porém, assim como Jamanta da novela, Augusto não morreu e é resgatado por mãe Quitéria e pai Serapião:

"Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso."

Devagar, ele se recupera não só física, como também espiritualmente. O personagem vai sofrendo uma transformação bastante radical pela influência do casal que o acolhe e de um padre que o aconselha: 

"— Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua."




De valentão, Augusto passa a bom-samaritano, ajudando todos que encontra pelo caminho, determinado a conseguir a salvação de sua alma "nem que seja a porrete" como o próprio diz, pois crê que todo o sofrimento vivido teria sido um castigo e um alerta de Deus para que se desviasse de seu caminho DO MAL. Mesmo depois que um conhecido o reencontra e conta que sua mulher fugiu com outro e sua filha "se perdeu com um cometa" (que seria uma espécie de caixeiro-viajante), Augusto permanece fiel à ideia de trilhar o caminho do bem, apesar de isso entrar em conflito com seus próprios ideais de masculinidade:

"Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que estava purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele! ‘A mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos, rolando por este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um rapazinho miúdo, tão no desamparo — e morrendo como homem, por causa do patrão... um patrão de borra, que estava p’r’ali no escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher!..."


Joãozinho Bem-Bem, vivido por José Wilker no filme de 2015


E assim, passam os dias até que  Joãozinho Bem-Bem, um jagunço com fama que não faz jus ao nome, definitivamente, chega com o bando e é recebido pelo casal que cuidou de Augusto (provavelmente por que não se pode discutir com jagunços armados). Augusto fica impressionado com as armas e o poder deles, ao ponto de se tratarem como parentes. Após perguntar se ele não teria "algum inimigo alegre" dando sopa por aí e ouvir uma negativa, Joãozinho convida Augusto para se juntar ao seu bando criminoso. Ele, agora um "homem de bem", recusa. 

"O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também... E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-o-mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. [...] E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes. Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura..."

O interessante de se notar na trajetória de Augusto, é que por mais radical que seja sua transformação, o personagem em si nunca chega a ser um santo. Ele continua preso à tentação do poder e consciente dos prazeres ao seu alcance, seja quando toma "um trago", fuma um cigarro de palha ou olha as mulheres que passam, sem falar na vontade que ele tinha de poder se vingar da ex-mulher e de todos que fizeram-lhe mal. Mas ele resiste, não por acreditar que isso seria o "certo", mas por crer que nisso está sua salvação e que assim ele não sofrerá mais como sofreu.


Eis que ele resolve abandonar a companhia de Mãe Quitéria e Pai Serapião e parte para o arraial do Rala-Coco, onde topa novamente com o bando de Joãozinho Bem-Bem, que repete a proposta. E a resposta é:

"Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações. Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam — talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes: — Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais..."

Depois, lhe trazem o pai de um dos assassinos de Joãozinho que tinha fugido e sobre quem queriam cometer uma vingança horrível contra a família dele. O homem, um velho, implora pela piedade do jagunço, que não se comove.

Diante dos pedidos do velho, Nhô Augusto porém, se ergue em compaixão, pois é finalmente chegada sua hora e vez: 

"— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz! Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral."





Joãozinho e Augusto ficam num embate que termina no confronto direto entre eles, a arma de Joãozinho contra a faca de Augusto. O resultado é a morte de ambos, um pelas mãos do outro.


Ê, facada bem dada

O bando de Joãozinho desiste do ataque com a morte do líder. O povo ao redor comemora de estar livre do domínio do jagunço. O velho ampara Augusto, chamando-o de santo e pedindo que seus filhos lhe beijem os pés. Augusto porém, quer apenas uma coisa: 

"Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou: — Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas! [...] Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento. Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha.., seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem! Depois, morreu."

O autor

Escritor mineiro, poliglota, médico e diplomata. Guimarães Rosa, também conhecido como "o terror dos tradutores", foi um dos principais nomes do modernismo, marcado pelos temas nacionais e pelo uso de neologismos e vocabulário popular. 

E aparentemente, um grande fã de gatinhos. Gostei.

"Um dos fatos pitorescos envolvendo essa paixão pelos pequenos felinos deu-se quando Jânio Quadros foi visita-lo em sua residência e, vendo o bom número de bichanos, achou diferente, visto que a maioria das pessoas prefere cães. Rosa disse: “Os gatos são muito mais fiéis ao dono. Já os cachorros se parecem com certos diplomatas, abanam o rabo para qualquer autoridade”."(fonte)
 
Realmente. 

Outra curiosidade é relacionada à sua posse da 2ª cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1963: "foi eleito por unanimidade, mas não foi empossado imediatamente, porque adiou a cerimônia enquanto pôde. Dizia ter medo de morrer no dia do evento. Só tomou posse em 16 de novembro de 1967. Três dias em 19 de novembro, morreu subitamente em seu apartamento no Rio de Janeiro, de infarto." (fonte)



Eu que fiz. De nada.



Na adaptação cinematográfica, o caráter dúbio do protagonista fica mais evidente pela interpretação do ator:

"A breve oração ensinada pelo padre é repetida por Matraga algumas vezes durante o filme. Em um momento, ao fim de uma conversa na qual ouve as más notícias sobre a mulher e a morte de Quim, nhô Augusto repete as palavras do padre: "Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso". Mas sai de casa correndo e urrando, embrenhando-se no mato. Ele cai de joelhos, bate com os punhos no chão e grita: "Pro céu eu vou e vou mesmo, por bem ou por mal! Pro céu eu vou nem que seja a porrete! Pro céu eu vou!". A oração do padre é substituída por esta, criada por nhô Augusto, e corresponde, ao contrário das palavras ensinadas pelo padre, ao que ele sente de fato."  (fonte)

Pra mim, a ideia que fica é que apesar de não mudar sua personalidade básica e muito menos os seus defeitos, Matraga se redime e se torna alguém que usa sua força e sua valentia a serviço de um bem maior. Ainda que essas mudanças sejam muito mais motivadas por um enorme medo do divino do que pelo simples desejo de ser bom, não se pode negar que o resultado é o mesmo, uma boa ação. É pelo contato com o casal de sertanejos que ele aprende a ser humilde e tratar os demais como gostaria de ser tratado, desenvolvendo um senso de comunidade. 

E isso nos leva ao tema principal da história, que se entrelaça de modo estranho com a realidade em volta da obra e suas adaptações.


Transformações radicais




A música "Réquiem para Matraga" já foi usada na novela Velho Chico e, mais recentemente, no filme Bacurau. Eu sei, ninguém aguenta mais ouvir falar de Bacurau, mas pra muita gente (assim como pra mim) pode ter sido o primeiro contato com a música.

Réquiem significa "descanso" em latim e é um tipo de missa fúnebre celebrada por igrejas cristãs. Também designa composições criadas para essas missas. (fonte)

Quando se olha a letra da canção composta pelo paraibano Geraldo Vandré para a adaptação cinematográfica do conto, lançada em 1965, percebe-se que ele dialoga muito bem com os temas da história de Augusto Matraga:

 

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar

Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar


Bem e mal, vida e morte, espiritualidade, o sacrifício em prol do coletivo, a revolta contra a violência e injustiça no campo, tudo isso transparece belamente em meio dos acordes de viola caipira, violão e triângulo e influências do interior do Centro-Oeste e Sudeste (fonte): 

"A performance vocal supõe a serenidade de um sábio ensinamento sob a forma de uma canção do campo, ou ainda, de um rasqueado – estilo musical de ritmo ternário bastante praticado na região do Mato Grosso, com influências sonoras fronteiriças, como a guarânia paraguaia." (fonte



Muitas outras canções do compositor repetem algumas dessas características, como "Fica mal com Deus", "Canção nordestina" e "Disparada", provavelmente um dos maiores clássicos de Vandré, só atrás de "Pra não dizer que não falei das flores". (No meu coração, porém, Disparada sempre ganha).

"Vandré, àquela altura, era ovacionado como o mais valente dos compositores. Especula-se que a euforia causada pela canção tenha apressado o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), dali a um mês e meio." (fonte)

Outro tema do conto e talvez o mais profundo, porém, se interliga de uma forma um tanto estranha com o compositor da música, que é a transformação radical que uma pessoa pode sofrer ao longo de uma vida. Enquanto no conto Augusto Matraga se transforma em Nhô Augusto, Vandré passou por algo semelhante ele próprio durante a ditadura militar:

"Ainda em 1968, Vandré fugiu do país, voltando bastante diferente em 1973. O ex-empresário, José Guedes, revelou em entrevista à revista Trip que após apresentação do Maracanãzinho, receberam o recado dos militares de que deveriam sumir. Ainda de acordo com o profissional, o músico passou mais um tempo em São Paulo, até partir para o Rio, onde se escondeu na casa do escritor Guimarães Rosa, de onde partiu para o Uruguai dentro de uma ambulância. Jair Rodrigues relatou à publicação que, ao voltar a reencontrar o amigo, já novamente no Brasil, foi recepcionado por uma estranha afirmação: "Eu cheguei todo animado e disse: 'Vandré'. Aí ele me olhou e falou: 'Eu sou o Geraldo Pedrosa, o Geraldo Vandré morreu em 1968'" (fonte)




O que teria acontecido com Geraldo Vandré nesse período é controverso. Apesar de certos biógrafos (leia-se: negacionistas da ditadura) dizerem que ele "nunca foi perseguido, nem torturado", é visível uma mudança profunda da identidade do músico, que era descrito por familiares, amigos e conhecidos como tendo um temperamento forte e irritadiço:

"Vandré se exilou no Chile e de lá viajou para Alemanha e França. Quando voltou, em 1973, já não era o mesmo. Decidiu que só faria “canções de amor” e, para espanto de seus fãs, compôs "Fabiana", em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Para muitos de seus contemporâneos, ele teria enlouquecido em decorrência das sessões de tortura. Em 2010, Vandré ressurgiu numa entrevista exibida pela GloboNews. Negou que tenha sido torturado e repudiou o rótulo de autor de músicas de protesto. “Eu não faço canção de protesto. Eu faço, fazia, música brasileira, canções brasileiras”, disse." (fonte)



Quando eu disse transformações radicais, era disso que eu falava. Do que mais vocês pensaram que fosse?

Ok, faz sentido.



Como dizia Raul Seixas, às vezes é preferível mudar de opinião que insistir na velha forma de ver o mundo e tudo. Na verdade, a única forma de ganhar maturidade é essa, estar sempre reexaminando suas crenças e repensando ideias. Por outro lado, há casos em que a mudança é tão drástica que passa a impressão de uma falta de coerência interna, como se a pessoa não tivesse tido tanto comprometimento assim com os ideais de outrora do que se pensava originalmente.    




É claro, o Vandré pode ter mesmo apenas mudado de ideia e tem todo o direito. Mas uma coisa que se esquece é que ele foi sim, abordado pelos militares e depois se refugiou no exterior, e não foi à toa, com certeza. A dor de estar longe de casa, da família e dos amigos não seria uma tortura por si só? Justo Geraldo Vandré, que tanto amava as músicas do país onde vivia, como alguém pode achar que esse sujeito não sofreu enquanto esteve exilado ao ponto de renegar seu próprio nome artístico, sua carreira, seus ideais que sustentava até então? Ingenuidade pensar que quatro anos no exterior vivendo sabe-se lá em que condições e com que grau de paranoia não mexem com a cabeça de qualquer um.

"O artista de 80 anos vive em São Paulo e, segundo amigos ouvidos pelo biógrafo, continua compondo, embora não se mostre disposto a gravar músicas ou publicar poemas." (fonte)



Um dos pontos que eu concordo é que talvez não dê mesmo pra chamar o Geraldo de artista engajado: ele provavelmente simpatizava com os movimentos estudantis e a esquerda que lutava contra a ditadura, mas talvez ele apenas quisesse ser isso, um artista. Por tudo o que eu li sobre as longas horas em que ficou compondo a melodia de Réquiem, ele realmente devia adorar cantar e tocar, principalmente para o público. E até isso talvez tenha sido tirado dele em seu exílio. 

Nessa linha de raciocínio, pra mim não é difícil ver no lugar de um desses artistas que "caducaram" com a idade, alguém semelhante a Augusto Matraga: um homem ferido que queria urgentemente escapar de uma força muito maior que ele, suprimindo sua identidade e criando outra para si no processo.

Ou, talvez, ele só tenha caducado mesmo. Nunca saberemos.



 

Qualquer que seja o motivo da mudança, Geraldo Vandré pode até estar "morto", mas suas canções ainda vivem e são celebradas por todo o país e afora.

Tempos atrás (quando ainda não éramos governados pelo capiroto) eu cheguei mesmo a debochar de como algumas pessoas adoravam essas músicas, pensando "Ah, não é tudo isso." Agora, conforme vemos essa situação calamitosa que dominou o país, entendo como essas canções foram e são importantes pra geração que viveu e que lutou na época contra a opressão institucionalizada pela ditadura militar.





Referências


O escritor que gostava de gatos